Em editorial de 27/08/2022, o Estadão, em perfeita sintonia com suas convicções ideológicas, defendeu de forma incisiva a privatização do saneamento no Brasil. O texto omitiu vários aspectos que devem ser considerados em um debate público sobre a condução da política para o saneamento brasileiro.
Para justificar a drástica intervenção para privatizar o saneamento, o déficit de atendimento em água e esgotos e a necessidade de investimentos são superestimados, contradizendo informações de documentos oficiais, como o Plano Nacional de Saneamento (PLANSAB) e os levantamentos da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), do IBGE.
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Viabilizado pelo lobby do setor privado articulado com o neoliberalismo de Paulo Guedes, o modelo para a condução da Política Nacional de Saneamento, vigente desde julho de 2020 com a promulgação da Lei nº 14.026 e defendido no editorial, contém diversas falhas em razão de falsas premissas.
A atuação da iniciativa privada na prestação de serviços de saneamento jamais foi proibida, quer seja por meio de licitações promovidas pelos municípios, quer seja por PPP’s, dentre outras possibilidades. Na verdade, deseja-se impor um oligopólio privado no saneamento.
Após quase três décadas de inação ou pífia atuação, a partir de 2003, houve um inegável processo de consolidação e evolução da política de saneamento no Brasil. A criação do Ministério Cidades e da Secretaria Nacional de Saneamento possibilitou a devida centralidade ao saneamento, retomando-se o planejamento e os instrumentos de participação e controle social via o Conselho das Cidades e suas conferências.
Com a edição da Lei nº 11.445, de 2007, criou-se um marco legal para a sólida e consistente retomada dos investimentos agrupados no PAC 1 e no PAC 2. Entre 2003 e 2017, investimentos onerosos, não onerosos e de outras fontes somaram 184,7 bilhões de reais, contratados pelos prestadores dos serviços de saneamento públicos e privados. Nesse período também foram elaborados o PLANSAB e o Programa Nacional de Saneamento Rural (PNSR). Não há como negar: todos os indicadores de atendimento em saneamento evoluíram positivamente, beneficiando milhões de pessoas.
Evidentemente, décadas de descaso e retrocessos não poderiam solucionar todos os problemas em poucos anos. Hoje, o déficit em abastecimento de água e esgotamento sanitário tem nome e endereço. É a população econômica e socialmente mais vulnerável, residente nas periferias urbanas, nos assentamentos precários, nas favelas, nos morros, na área rural e nas áreas de povos originários ou tradicionais. É um público e são lugares em que não há interesse para o setor privado, pois investimentos não trazem arrecadação capaz de gerar lucros e, consequentemente, as transferências de recursos e de dividendos aos acionistas.
Visto que as cinco maiores empresas privadas de saneamento são controladas ou possuem forte participação de fundos de investimentos ou bancos, nacionais ou estrangeiros, a intenção desse setor do mercado financeiro é disputar ativos em regiões mais populosas, como as regiões metropolitanas, em que o retorno na forma de lucros é, potencialmente, maior e mais rápido. O segmento privado tem profundo desinteresse em atender justamente onde há maior demanda de investimento, como nos sistemas de esgotamento sanitário. Um exemplo está na cidade de
Manaus, privatizada em 2000 e que até hoje não alcançou sequer 20% de sua população com atendimento em esgotos.
Outra argumentação contrária à prestação de serviços públicos está em que somente o setor privado poderá aportar recursos novos para o saneamento. A modelagem desenvolvida pelo BNDES para os leilões de privatização, que privilegia a concessão mediante pagamento imediato de outorgas bilionárias, promove a drenagem de recursos para aplicação por estados em municípios em qualquer tipo de despesa, sobrando praticamente zero para saneamento.
Nos estados de Alagoas, Amapá e Rio de Janeiro os investimentos estimados ao longo dos respectivos contratos de 35 anos somam 45,8 bilhões de reais, enquanto a outorga nos leilões para pagamento praticamente à vista foi de 29,5 bilhões, isto é, cerca de 64% em relação aos investimentos totais. Obviamente, o valor da outorga paga pelas empresas privadas aos estados será remunerada ao novo concessionário pela população “beneficiada” mediante a transferência desse custo para as tarifas de água e esgotos.
Além disso, nesses contratos está definido que a população a ser atendida é de 10 milhões de pessoas, sendo que a população total das áreas concedidas é 17 milhões, significando que cerca de 40% da população estará excluída do atendimento. Com certeza, quem mais sofrerá neste processo vil será a população nos morros cariocas e nas periferias alagoanas e amapaenses em situação de vulnerabilidade, caracterizando-se uma verdadeira violação dos direitos humanos à água e ao esgotamento sanitário.
Outro argumento falacioso está na eficiência do setor, propalada como inquestionável. Além do já citado péssimo exemplo de Manaus, em Tocantins as cidades deficitárias foram devolvidas pela empresa privada ao governo estadual e na cidade paulista de Itu a péssima gestão da empresa privada durante a crise hídrica de 2015 levou à remunicipalização dos serviços. A Iguá Saneamento que presta serviços em São Paulo, Santa Catarina e Mato Grosso, resolveu colocar à venda 11 concessões de ativos considerados pequenos para focar em contratos de médio e grande porte.
Não faltam exemplos mundo afora que comprovam a ineficiência ou a incompetência privada em atender às necessidades da população, e mostram que o Brasil está na contramão do que vem acontecendo em vários países. Um estudo realizado pelo Instituto Transnacional (TNI), sediado na Holanda, identificou que, entre 2000 e 2017, 884 municípios de países em todos os continentes reestatizaram seus serviços, sendo 287 em saneamento, destacando-se cidades como Paris, Berlim, Buenos Aires, Jacarta e Atlanta. Na maioria dos casos, a reestatização foi adotada devido às falsas promessas dos operadores privados, a aumentos abusivos de tarifas, aos lucros exorbitantes, ao descumprimento de contratos e metas de investimentos, e à deficiência de controle e fiscalização.
A imprensa inglesa tem denunciado os escândalos da privatização na Inglaterra e no País de Gales. No The
Guardian, Jonathan Portes, professor de Economia e Políticas Públicas no King’s College London e que trabalhou na privatização do saneamento da Inglaterra em 1989, declarou que aquele processo foi um roubo organizado. Para ele, os contribuintes perderam e os consumidores têm sido espoliados desde então, demonstrando que este regime está falido e perdeu sua validade há muito tempo.
Os desafios da universalização do saneamento no Brasil são significativos, contudo o remédio proposto pelos defensores da privatização para superar esse quadro é para matar o doente.
*Artigo de Edson Aparecido Silva e Amauri Polachi, publicada na Carta Capital