Por Michael Hudson*
Um fator poderosíssimo para a desindustrialização das sociedades ocidentais contemporâneas é o aumento do custo de vida resultante da conversão de infraestruturas públicas em monopólios privatizados. Quando os Estados Unidos e a Alemanha ultrapassaram o capitalismo industrial britânico, foi reconhecido que uma das principais chaves para a vantagem industrial era o investimento público em ferrovias, estradas, e outros meios de transportes; educação, saúde pública, comunicações e outras infraestruturas básicas. Simon Patten, o primeiro professor de teoria econômica na primeira business school dos EUA, a Wharton School da Universidade da Pensilvânia, definiu a infraestrutura pública como um “quarto fator de produção”, para além do trabalho, do capital e da terra. Mas ao contrário do capital, explicava Patten, o seu objetivo não era o de obter lucro. O seu objetivo era minimizar o custo de vida e de fazer negócios, proporcionando serviços básicos a baixo preço para tornar o setor privado mais competitivo.
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Ao contrário das taxas militares que sobrecarregavam os contribuintes nas economias pré-modernas, “numa sociedade industrial, o objetivo da tributação é aumentar a prosperidade industrial” através da criação de infraestruturas sob a forma de canais e ferrovias, um serviço postal e educação pública. Esta infraestrutura era um “quarto” fator de produção. Os impostos seriam “não encargos”, explicava Patten, na medida em que fossem investidos em melhoramentos internos públicos, encabeçados por transportes tais como o Canal Erie [2].
A vantagem deste investimento público é reduzir custos ao invés de deixar privatizadores imporem rendas de monopólio na forma de encargos de acesso à infraestrutura básica. Governos podem estabelecer os preços dos serviços destes monopólios naturais (incluindo criação de crédito, como estamos a ver hoje) ao preço de custo ou oferecê-los gratuitamente, ajudando o trabalho e seus empregadores industriais a venderem por menos a países aos quais faltam tais empreendimentos públicos.
Nas cidades, explicava Patten, o transporte público elevava os preços das propriedades (e portanto da renda econômica) na periferia afastada, assim como o Canal Erie havia beneficiado agricultores do Oeste que competiam com agricultores do norte do estado de Nova York. Esse princípio é evidente nos bairros suburbanos de hoje em relação aos centros de cidades. A extensão do metrô de Londres ao longo da Jubilee Line, e do metrô da Segunda Avenida da Cidade de Nova York, mostraram que o transporte subterrâneo e o ônibus podem ser financiados publicamente pela tributação do valor rentístico mais alto criado para determinados espaços ao longo destas rotas. Pagar o investimento de capital a partir de tais taxas pode providenciar transportes a preços subsidiados, minimizando consequentemente o custo de estrutura da economia. O que Joseph Stiglitz popularizou como a “Lei de Henry George” deveria assim, mais corretamente, ser conhecida como “Lei de Patten” da tributação não sobrecarregada por dívidas (burdenless). [3]
Sob um regime de “tributação não exagerada” o retorno sobre o investimento público não toma a forma de lucro mas destina-se a reduzir o preço geral de estrutura da economia para “promover prosperidade geral”. Isto significa que governos deveriam operar diretamente os monopólios naturais ou, pelo menos, regulá-los. “Parques, serviços de saneamento e escolas melhoram a saúde e a inteligência de todas as classes de produtores, o que lhes permite produzir de modo mais barato e competir com mais êxito em outros mercados”. Patten concluía: “Se os tribunais, correios, parques, obras gasistas, hidráulicas, de arruamentos, fluviais e melhorias de portos e outras obras públicas não aumentarem a prosperidade da sociedade elas não deveriam ser efetuadas pelo Estado”. Mas esta prosperidade para a economia geral não pode ser obtida ao tratar empresas públicas como centros de lucro, como se diz hoje em dia. [4]
Em certo sentido, isto pode ser chamado “privatizar os lucros e socializar os prejuízos”. Advogar uma economia mista de acordo com estas linhas é parte da lógica do capitalismo industrial que procura minimizar a produção do setor privado e dos custos de emprego a fim de maximizar lucros. A infraestrutura social básica é um subsídio a ser fornecido pelo estado.
O primeiro-ministro conservador britânico Benjamin Disraeli (1874-80) refletiu este princípio: “A saúde do povo é realmente o fundamento sobre o qual depende toda a sua felicidade e todos os seus poderes enquanto Estado”. [5] Ele patrocinou a Lei da Saúde Pública de 1875, seguida da Lei da Venda de Alimentos e Drogas e, no ano seguinte, a Lei da Educação. O governo prestaria estes serviços, e não empregadores privados em busca de monopólio.
Durante um século, o investimento público ajudou os Estados Unidos a seguir uma política de economia de altos salários, providenciando padrões de educação, alimentação e saúde para tornar o trabalho mais produtivo e assim ser capaz de livrar-se do trabalho “miserável” de baixo salário. O objetivo era criar uma retroalimentação positiva entre salários em ascensão e aumento da produtividade do trabalho.
Isto está em contraste absoluto com o business plan do capitalismo financeiro de hoje – cortar salários e, também, reduzir o investimento de capital a longo prazo, a investigação e o desenvolvimento enquanto privatiza infraestrutura pública. A carnificina neoliberal de Ronald Reagan nos Estados Unidos e de Margaret Thatcher na Grã-Bretanha na década de 1980 foi apoiada pelas exigências do FMI de que economias devedoras equilibrassem seus orçamentos pela liquidação de empresas públicas e recortes nos gastos sociais. Serviços de infraestrutura foram privatizados como monopólios naturais, aumentando drasticamente os custos de estrutura de tais economias, mas criando enormes comissões de subscrição financeira e ganhos no mercado bolsista da Wall Street e de Londres.
Até agora privatizar monopólios públicos tornou-se um dos modos mais lucrativos de ganhar riqueza financeiramente. Mas cuidados de saúde privatizados e seguros médicos são pagos pelo trabalho e seus empregadores, não pelo governo como no capitalismo industrial. E face à ascensão de custos do sistema educacional privatizado, o acesso da classe média ao emprego tem sido financiado pela dívida estudantil. Estas privatizações não ajudaram as economias a tornarem-se mais ricas ou competitivas. Ao nível vasto da economia, este plano de negócios é uma corrida para o fundo, mas uma corrida que beneficia a riqueza financeira no topo.
O capitalismo financeiro empobrece economias enquanto aumenta seu custo de estrutura
A renda econômica clássica é definida como o excesso de preço sobre o valor de custo intrínseco. Capitalizar esta renda – quer seja a renda da terra ou a renda monopólica da privatização acima descrita – em obrigações, ações e empréstimos bancários cria “riqueza virtual”. A criação exponencial de crédito do capitalismo financeiro aumenta a riqueza “virtual” – títulos financeiros e direitos de propriedade – ao administrar estes títulos e créditos de uma forma que os fez valer mais do que a riqueza real tangível.
A principal forma de ganhar fortunas é obter ganhos nos preços de ativos (“ganhos de capital”) em ações, obrigações e bens imobiliários. Contudo, esta sobrecarga financeira exponencialmente crescente, com alavancagem da dívida, polariza a economia de forma a concentrar a propriedade da riqueza nas mãos dos credores, e dos proprietários de imóveis de aluguel, ações e títulos – drenando a economia “real” a fim de pagar o setor FIRE.
A teoria econômica pós-classica descreve a infraestrutura privatizada, o desenvolvimento de recursos naturais e a banca como fazendo parte da economia industrial, não sobreposta a ela por uma classe em busca de rendas. Mas a dinâmica de economias capitalistas-financeiras não consiste em ganhar riqueza principalmente pelo investimento em meios de produção industrial e poupando lucros ou salários, mas sim em ganhos de capital obtidos principalmente através da procura da busca de rendas. Estes ganhos não são “capital” como se entendia classicamente. São “ganhos financeiros-capitalistas”, porque resultam de uma inflação de preços de ativos alimentada pela alavancagem da dívida.
Ao inflacionar os seus preços de habitação e uma bolha no mercado de ações a crédito, a alavancagem da dívida dos EUA, bem como a sua financeirização e privatização de infraestruturas básicas, colocou os seus preços afastados dos mercados mundiais. A China e outros países não financiarizados evitaram custos elevados de seguros de saúde, custos de educação e outros serviços, estabelecendo-os em baixo custo ou gratuitos, encarando-os como um serviço público. A saúde pública e os cuidados médicos custam muito menos no estrangeiro, mas são atacados nos Estados Unidos pelos neoliberais como “medicina socializada”, como se financiarizar a prestação de cuidados de saúde tornasse a economia dos EUA mais eficiente e competitiva. Os transportes também foram financiarizados e gerido com fins lucrativos, não para baixar o custo de vida e de fazer negócio.
Deve-se concluir que a América optou por não mais industrializar, mas financiar a sua economia através da renda econômica – renda monopolista, desde as tecnologias de informação, à banca e à especulação, deixando a indústria, investigação e desenvolvimento para outros países. Mesmo que a China e outros países asiáticos não existissem, não há maneira de a América recuperar os seus mercados de exportação ou mesmo o seu mercado interno com as suas atuais despesas gerais sobrecarregadas pelo endividamento e a sua educação privatizada e financiarizada, assim como os cuidados de saúde, transportes e outros setores de infraestrutura básica.
O problema subjacente não é a competição da China, mas a financiarização neoliberal. Capitalismo-financeiro não é capitalismo industrial. É uma decadência de volta à servidão da dívida e ao neo-feudalismo rentista. Os banqueiros desempenham hoje o papel que os senhores da terra desempenharam ao longo do século XIX, fazendo fortunas sem o valor correspondente, através de ganhos de capital com o imobiliário, ações e títulos a crédito, pelo alavancamento de dívida cujos encargos aumentam o custo de viver e de fazer negócio da economia.
A nova guerra fria de hoje é um combate do capitalismo financeiro contra o capitalismo industrial
O mundo de hoje está a ser fraturado por uma guerra econômica sobre que espécie de sistema econômica terá. O capitalismo industrial está a perder o combate para o capitalismo financeiro, o qual está a revelar-se como a sua antítese – assim como o capitalismo industrial era a antítese dos senhores da terra pós-feudais e das casas bancárias predadoras.
A este respeito, a Nova Guerra Fria de hoje é um conflito de sistemas econômicos. Como tal, ela está a ser combatida contra a dinâmica do capitalismo industrial dos EUA, bem como aquele da China e de outras economias. Portanto, a luta é também interna nos Estados Unidos e na Europa, bem como confrontacional contra a China e a Rússia, o Irão, Cuba, Venezuela e os seus movimentos para desdolarizar as suas economias e rejeitar o Consenso de Washington e a sua Diplomacia do Dólar. É uma luta do capital financeiro centrado nos EUA para promover a doutrina neoliberal que concede privilégios fiscais especiais ao rendimento dos rentistas, desonerando tributariamente a renda de terra, a renda de recursos naturais, a renda de monopólio e a do setor financeiro. Este objetivo inclui a privatização e a financeirização de infraestruturas básicas, maximizando a sua extração de renda econômica ao invés de minimizar o custo de vida e de fazer negócio.
O resultado é uma guerra para mudar o caráter do capitalismo bem como o da social-democracia. O Partido Trabalhista britânico, sociais-democratas europeus e o Partido Democrata dos EUA saltaram todos para dentro do vagão neoliberal. Todos eles são cúmplices na austeridade que se tem propagado desde o Mediterrâneo até o cinturão da ferrugem no Meio-Oeste dos EUA.
O capitalismo financeiro explora o trabalho, mas via um setor rentista, o qual acaba por canibalizar o capital industrial. Este impulso tem-se internacionalizado num combate contra nações que restringem a dinâmica predatória do capital financeiro que procura privatizar e desmantelar o poder regulatório do governo. A Nova Guerra Fria não é meramente uma guerra que está a ser travada pelo capitalismo financeiro contra o socialismo e a propriedade pública dos meios de produção. Tendo em vista a dinâmica inerente do capitalismo industrial que exige forte regulamentação estatal e poder tributário para controlar a intrusão do capital financeiro, este conflito global pós-industrial é entre o socialismo que evolui a partir do capitalismo industrial e o fascismo, definido como uma reacção rentista para mobilizar o governo a fim de fazer recuar a social-democracia e restaurar o controlo das classes financeiras e monopolistas rentistas.
A velha Guerra Fria era um combate contra o “Comunismo”. Além de libertar-se da renda da terra, dos encargos com juros e de lucros industriais apropriados privadamente, o socialismo favorece o combate do trabalho por melhores salários e condições de trabalho, melhor investimento público em escolas, cuidados de saúde e outros apoios ao bem estar social, melhor segurança de emprego e seguro de desemprego. Todas estas reformas minariam os lucros dos empregadores. Lucros mais baixos significam preços de ações mais baixos e portanto menos ganhos para o capital financeiro.
O objetivo do capitalismo financeiro não é tornar uma economia mais produtiva pela produção de bens e a sua venda a um custo mais baixo do que os competidores. O que à primeira vista pode parecer ser rivalidade econômica internacional e inveja entre os Estados Unidos e a China é portanto melhor visto como um combate entre sistemas econômicos: o do capitalismo financeiro e o da civilização a tentar libertar-se de privilégios rentistas e da submissão a credores, com uma filosofia de governo mais social com poder de decisão para controlar interesses privados quando eles atuam egoistamente e prejudicam a sociedade como um todo.
O inimigo nesta Nova Guerra Fria não é meramente governo socialista mas governo em si mesmo, exceto na medida em que ele possa ser trazido para ficar sob o controle da alta finança a fim de promover a agenda neoliberal rentista. Isto reverte a revolução política democrática do século XIX que substituiu a Casa dos Lordes e outras câmaras altas controladas pela aristocracia hereditária por legisladores mais representativos. O objetivo é criar um estado corporativo, substituindo organismos governamentais eleitos por bancos centrais – o Federal Reserve dos EUA e o Banco Central Europeu, juntamente com pressão externa do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial.
O resultado é um “estado profundo” a apoiar uma oligarquia financeira cosmopolita. Isto é a definição de fascismo, revertendo governos democráticos para devolver o controle às classes financeiras e monopolistas rentistas. O beneficiário é o setor corporativo, não o trabalho, cujo ressentimento é desviado contra estrangeiros e contra inimigos internos designados.
Na falta de afluência estrangeira, o Estado corporativo norte-americano promove o emprego através de uma acumulação militar e de despesas públicas em infraestruturas, a maior parte das quais é entregue a iniciados internos a fim de privatizar em monopólios em busca de renda e em sinecuras. Nos Estados Unidos, as forças armadas estão a ser privatizadas para combater no estrangeiro (exemplo: Blackwater USA/Academi) e as prisões estão a ser transformadas em centros de lucro utilizando condenados como mão-de-obra barata.
O que é irônico é que embora a China esteja a procurar desligar-se do capitalismo financeiro ocidental, na realidade tem feito o que os Estados Unidos fizeram na sua descolagem industrial no final do século XIX e início do século XX. Como uma economia socialista, a China tem visado aquilo que se esperava do capitalismo industrial: libertar a sua economia do rendimento rentista (senhores da terra e bancos usurários), em grande parte através de uma política progressiva de impostos sobre o rendimento que incide principalmente sobre o rendimento de rentistas.
Acima de tudo, a China tem mantido a banca no domínio público. Manter a moeda e a criação de crédito públicas ao invés de privatiza-las é o passo mais importante para manter baixo o custo de vida e de fazer negócio. A China foi capaz de evitar uma crise de dívida pelo esquecimento das mesmas ao invés de encerar empresas endividadas consideradas serem de interesse público. Neste aspecto, é a China socialista que está a alcançar o destino que se esperava inicialmente do capitalismo industrial no Ocidente.
Resumo: O capital financeiro em busca de renta
A transformação da teoria econômica acadêmica sob o capitalismo financeiro de hoje inverteu o impulso progressivo e mesmo radical da economia política clássica que evoluiu para o marxismo. A teoria pós-clássica descreve os setores financeiro e outros rentistas como uma parte intrínseca da economia industrial. Os atuais formatos contabilísticos do rendimento nacional e do PIB são compilados de acordo com esta reação anticlássica, representando o setor FIRE e os seus setores aliados em busca de renda como um acréscimo ao rendimento nacional e não como um subtraindo. Juros, rendas e preços monopolistas são todos contabilizados como “ganhos” – como se todos os rendimentos fossem obtidos como partes intrínsecas do capitalismo industrial e não como extração predatória como despesas gerais da propriedade imobiliária e dos créditos financeiros.
Isto é o oposto da teoria econômica clássica. O capitalismo financeiro é um mecanismo para evitar o que Marx e na verdade a maioria dos seus contemporâneos esperavam: que o capitalismo industrial evoluísse para o socialismo, de forma pacífica ou não.
Algumas observações finais: As finanças tomam controle da indústria, do governo e da ideologia
Quase todas as economias são uma economia mista – pública e privada, financeira, industrial e de buscadores de renda. Dentro destas economias mistas, a dinâmica financeira – crescimento da dívida por juros compostos, atendo-se primariamente a privilégios de extração de renda e, portanto, protegendo-os ideológica, política e academicamente. Estas dinâmicas são diferentes daquelas do capitalismo industrial e, na verdade, prejudicam a economia industrial ao desviar o seu rendimento a fim de pagar ao setor financeiro e os seus clientes rentistas.
Uma expressão deste antagonismo inato é o horizonte temporal. O capitalismo industrial requer planeamento a longo prazo para desenvolver um produto, fazer um plano de marketing e empreender investigação e desenvolvimento para seus preços abaixo dos dos concorrentes. A dinâmica básica é M-C-M’: o capital (dinheiro, M) é investido na construção de fábricas e outros meios de produção e no emprego de mão-de-obra para vender os seus produtos (mercadorias, C) com um lucro (M’).
O capitalismo financeiro abrevia este processo para um M-M’, fazendo dinheiro de modo puramente financeiro, pela cobrança de juros e obtenção de ganhos de capital. O modo financeiro de “criação de riqueza” é medido pela avaliação do imobiliário, ações e títulos. Esta avaliação Esta avaliação durante muito tempo foi baseada na capitalização do seu fluxo de receitas (rendas ou lucros) à taxa de juro corrente, mas agora baseia-se quase inteiramente nos ganhos de capital como a fonte principal de “retornos totais”.
Ao assumir o controlo de empresas industriais, os gestores financeiros concentram-se no curto prazo, pois o seu salário e bônus baseiam-se no desempenho do ano em curso. O “desempenho” em causa é o desempenho na bolsa de valores. Os preços das cações tornaram-se em grande medida independentes do volume de vendas e dos lucros, agora que são aumentados pelas empresas que normalmente pagam cerca de 92 por cento das suas receitas em dividendos e recompra de ações [6].
Ainda mais destrutivamente, o capital privado criou um novo processo: M-dívida-M’. Um documento recente calcula isso: “Mais de 40% das empresas que efetuam pagamentos também angariam capital durante o mesmo ano, resultando em 31% das recompras e dividendos agregados de ações financiadas externamente, primariamente com dívida”. [7] Isto tornou o setor corporativo financeiramente frágil, particularmente a indústria aérea na sequência da crise da covid-19.
A essência das participações privadas ( private equity ), explica Matt Stoller, é que “engenheiros financeiros [angariem] grandes quantias de dinheiro e contraiam ainda mais empréstimos para comprar empresas e saqueá-las. Estes tipos de barões do private equity não são especialistas que ajudam a financiar produtos e serviços úteis, eles fazem negócios de cortadores de biscoitos atacando empresas que acreditam ter poder de mercado para elevar preços, que podem despedir trabalhadores ou vender ativos, e/ou que têm alguma espécie de alçapão legal vantajoso. Muitas vezes destroem o negócio subjacente. Os gigantes da indústria, desde a Blackstone até a Apollo, são os filhos do rei dos títulos lixo (junk bond) da década de 1980 e do defraudador Michael Milken. Eles são essencialmente mafiosos super dimensionados” [8].
O capital privado tem desempenhado um grande papel no aumento da alavancagem corporativa, tanto através das suas próprias acções como através da desinibição de grandes companhias públicas na utilização da dívida. Como explicaram Eileen Appelbaum e Rosemary Batt, as grandes firmas de compras (buyout), na sequência do manual desenvolvido na década de 1980, produzem os seus retornos a partir da engenharia financeira e do corte de custos (acordos de redução de dimensão visam empresas “mais crescentes”, mas enquanto aquelas empresas de private equity asseveram que acrescentam valor, isto pode ser apenas pelo fato de serem habilidosas em identificar empresas promissoras e em cavalgar uma onda de desempenho).
Ao contrário do que diz o seu marketing, as taxas de estrutura das private equity significam que elas ganham dinheiro mesmo quando levam firmas à bancarrota. E elas tornaram-se tão poderosas que é difícil obter apoio político para travá-las quando prejudicam grande número de cidadãos através de práticas exploradoras como a faturação de equilíbrio (“surpresa”) [9].
A descrição clássica deste processo de saqueio com fins lucrativos é o documento de George Akerloff e Paul Romer de 1993, que descreve como “as empresas têm um incentivo para irem à falência por lucro a expensas da sociedade (para saquear) ao invés de irem em frente (para apostar no êxito)”. A bancarrota com fins lucrativos ocorrerá se uma má contabilidade, uma regulamentação laxista, ou penalidades baixas por abuso derem aos proprietários um incentivo para se pagarem a si próprios mais do que as suas empresas valem e a seguir incumprirem as suas obrigações de dívida”. [10]
O fato de os “ganhos de papel” dos preços das ações poderem ser eliminados quando ocorrem tempestades financeiras, torna o capitalismo financeiro menos resiliente do que a base industrial de investimento em capital tangível que permanece no lugar. Os Estados Unidos encurralaram a sua economia num canto ao desindustrializarem, substituindo a formação de capital tangível por “riqueza virtual”, ou seja, créditos financeiros sobre rendimentos e ativos tangíveis. Desde 2009, e especialmente desde a crise covid de 2020, a sua economia tem estado a sofrer através daquilo a que se chama uma “recuperação” em forma de K [NR] . Os mercados de ações e títulos atingiram máximos históricos para beneficiar as famílias mais ricas, mas a economia “real” da produção e consumo, do PIB e emprego, declinou para o setor não-rentista, ou seja, a economia em geral.
Como explicarmos esta disparidade se não pelo reconhecimento de que diferentes dinâmicas e leis do movimento estão a funcionar? Ganhos em riqueza cada vez mais tomam a forma de uma valorização ascendente de direitos financeiros e de propriedade rentistas sobre os ativos reais e rendimentos reais da economia, encabeçados por direitos de extração de rendas, não por meios de produção.
Um capitalismo financeiro desta espécie só pode sobreviver se retirar ganhos exponencialmente crescentes de fora do sistema, quer pela criação de moeda pelo banco central (Quantitative Easing) quer pela financiarização de economias estrangeiras, privatizandoas para substituir serviços de infraestruturas públicas de baixos preços por monopólios em busca de renda que emitem títulos e ações, amplamente financiados por crédito baseado no dólar à procura de ganhos de capital. O problema com este imperialismo financeiro é que ele faz os hospedeiros clientes tornarem-se economias de alto custo como as dos EUA e de outros patrocinadores nos centros financeiros do mundo.
Todos os sistemas econômicos procuram internacionalizar-se e estender o seu domínio através do mundo. A Guerra Fria reavivada de hoje deveria ser entendida como um combate sobre que espécie de sistema econômico terá o mundo. O capitalismo financeiro está a lutar contra nações que restringem a sua dinâmica intrusiva e o patrocínio da privatização e do desmantelamento do poder regulador público. Ao contrário do capitalismo industrial, o objetivo rentista não é tornar uma economia mais produtiva pela produção de bens e a sua venda a um custo inferior ao dos competidores. As dinâmicas do capitalismo financeiro são globalistas, procurando utilizar organizações internacionais (o FMI, a NATO, o Banco Mundial e as sanções comerciais e de investimento concebidas pelos EUA) para anular governos nacionais que não são controlados pelas classes rentistas. O objetivo é transformar todas as economias em capitalistas-financeiras com camadas de privilégio hereditário, impondo políticas de austeridade antilaboral para espremer um excedente dolarizado.
A resistência do capitalismo industrial a esta pressão internacional é necessariamente nacionalista, porque necessita de subsídios e leis do estado para tributar e regular o setor FIRE. Mas está a perder o combate para o capitalismo financeiro, o qual está a transformar-se na sua nêmesis, tal como o capitalismo industrial foi a nêmesis do senhor da terra pós-feudal e da banca predatória. O capitalismo industrial exige subsídios estatais e investimento em infraestruturas, juntamente com poder regulador e fiscal para controlar a investida do capital financeiro. O conflito global resultante é entre o socialismo (a evolução natural do capitalismo industrial) e um fascismo pró-rentista, uma reação estatal-financeira-capitalista contra a mobilização do poder estatal do socialismo para repelir os interesses dos rentistas pós-feudais.
Portanto, subjacente à rivalidade hoje sentida pelos Estados Unidos contra a China está um choque de sistemas econômicos. O conflito real não é tanto “América vs. China”, mas sim capitalismo financeiro vs. capitalismo/socialismo de “estado” industrial. O que está em jogo é se “o estado” irá apoiar a financeirização em benefício da classe rentista ou fortalecer a economia industrial e a prosperidade global.
Para além do seu horizonte temporal, o outro grande contraste entre capitalismo financeiro e capitalismo industrial é o papel do governo. O capitalismo industrial quer que o governo ajude a “socializar os custos”, subsidiando serviços de infraestruturas. Ao baixar o custo de vida (e consequentemente o salário mínimo), isto deixa mais lucros a serem privatizados. O capitalismo financeiro quer arrancar estes serviços públicos do domínio público e transformá-los em ativos privatizados submissos à renda. Isso eleva a estrutura de custos da economia – e, em consequência, é autodestrutivo do ponto de vista da competição internacional entre industriais.
Esta é a razão porque economias de custo mais baixo e menos financiarizadas ultrapassaram os Estados Unidos, a começar pela China. O modo como a Ásia, a Europa e os Estados Unidos reagiram à crise do Covid-19 enfatiza este contraste. A pandemia forçou cerca de 70 por cento dos restaurantes de bairro locais a encerrarem diante de grandes rendas e dívidas atrasadas. Arrendatários, desempregados proprietários de habitações e investidores imobiliários, bem como numerosos setores de consumo enfrentam também despejos e desalojamentos, insolvência e execução de hipotecas ou vendas desesperadas quando a atividade econômica afunda.
Menos amplamente observado é como a pandemia levou a Reserva Federal a subsidiar a polarização e monopolização da economia dos EUA, disponibilizando crédito a apenas uma fração de 1 por cento para bancos, fundos de private equity e às maiores corporações do país, ajudando-as a devorar pequenas e médias empresas em dificuldades.
Durante uma década após o salvamento bancário fraudulento de Obama em 2009, o Fed descreveu o seu objetivo como sendo manter a liquidez do sistema bancário e evitar danos aos detentores dos seus títulos, acionistas e grandes depositantes. O Fed infundiu o sistema bancário comercial com poder de empréstimo suficiente para apoiar os preços das ações e obrigações. A liquidez foi injetada no sistema bancário através da compra de títulos do governo, como era normal. Mas depois de o vírus do covid atacar em Março de 2020, o Fed começou a comprar dívida corporativa pela primeira vez, incluindo títulos lixo. A ex-chefe do FDIC [Federal Deposit Insurance Corporation], Sheila Bair, e o economista do Tesouro Lawrence Goodman, nota, a Reserva Federal comprou os títulos “de ‘anjos caídos’ que afundaram para o status de lixo durante a pandemia”, por se terem permitido empréstimos super-alavancados para pagar dividendos e comprar as suas próprias acções [11].
O Congresso considerou a possibilidade de limitar a utilização das receitas dos títulos comprados “para compensações executivas ou distribuições a acionistas” no momento em que aprovou as medidas, mas não fez qualquer tentativa para impedir as empresas de o fazerem. Registrando que “a Sysco utilizou o dinheiro para pagar dividendos aos seus acionistas enquanto despedia um terço da sua força de trabalho … um relatório da comissão parlamentar constatou que as empresas que beneficiaram das medidas despediram mais de um milhão de trabalhadores entre Março e Setembro”. Bair e Goodman concluem que “há pouca evidência de que a compra da dívida empresarial do Fed tenha beneficiado a sociedade”. Pelo contrário: As ações do Fed “criaram mais uma oportunidade injusta para as grandes empresas ficarem ainda maiores pela compra dos competidores com o crédito subsidiado pelo governo”.
O resultado, eles acusam, está a transformar a conformação política da economia. “Os salvamentos (bailouts) em série do mercado pelas autoridades monetárias – primeiro o sistema bancário em 2008 e agora todo o mundo empresarial em meio a pandemia” – tem sido “uma ameaça maior [para destruir o capitalismo] do que Bernie Sanders”. As “taxas de juro super baixas do Fed favoreceram o capital próprio das grandes empresas em detrimento das suas congêneres mais pequenas”, concentrando o controle da economia nas mãos das empresas com maior acesso a tais créditos.
As empresas mais pequenas são “a principal fonte de criação de emprego e de inovação”, mas não têm acesso ao crédito quase gratuito de que desfrutam os bancos e os seus maiores clientes. Como resultado, o setor financeiro continua a ser a mãe dos trusts, concentrando a riqueza financeira e corporativa ao financiar uma devastação das empresas mais pequenas pelas companhias gigantes para monopolizar o mercado de dívida e de salvamento.
O resultado desta concentração financiarizada do “peixe grande come o peixe pequeno” é uma versão nos dias modernos do Estado Corporativo do fascismo. Radhika Desai chama a isto “creditocracia”, regido pelas instituições no controle do crédito. [É um sistema econômico no qual os bancos centrais tomam dos órgãos políticos eleitos e do Tesouro o controle da política econômica, completando assim o processo de privatização do controle da economia no seu todo.
[2] “The Theory of Dynamic Economics,” Essays in Economic Theory ed. Rexford Guy Tugwell (New York: 1924), pp. 96 e 98, originalmente em The Publications of the University of Pennsylvania, Political Economy and Public Law Series 3:2 (whole No. 11), 1892, p. 96. Governos aristocráticos da Europa desenvolveram sua política fiscal “numa época em que o estado era uma mera organização militar para a defesa da sociedades de inimigos estrangeiros, ou para satisfazer sentimentos nacionais por guerras agressivas”. Tais estados tinham uma política de desenvolvimento económico “passiva” e sua filosofia fiscal não se baseava na eficiência econômica. Apresento pormenores em “Simon Patten on Public Infrastructure and Economic Rent Capture,” American Journal of Economics and Sociology 70 (October 2011), pp. 873-903.
[3] George defendeu um imposto sobre a terra, mas a sua oposição ao socialismo levou-o a rejeitar os conceitos de valor e preço, necessários para definir a renda econômica quantitativamente. A sua defesa dos banqueiros e dos juros tornou as suas recomendações políticas ineficazes na medida em que passou para a ala da direita libertária do espectro político, opondo-se a investimento governamental, mas limitando-se a tributar as rendas dos privatizadores – o contrário do que Patten e a sua escola pró-industrial de economistas defendiam, com base na teoria clássica do valor e dos preços.
[4] “The Theory of Dynamic Economics,” p. 98.
[5] Discurso de 24 de Junho de 1877. Ele utilizou o latim e disse “Sanitas, Sanitatum” e traduziu isto como “Saneamento, tudo é saneamento”. Era um jogo de palavras com o famoso aforismo, “Vanitas, vanitatum,” “Vaidade, tudo é vaidade”.
[6] William Lazonick, “Profits Without Prosperity: Stock Buybacks Manipulate the Market and Leave Most Americans Worse Off,” Harvard Business Review, September 2014. E mais recentemente, Lazonick e Jang-Sup Shin, Predatory Value Extration: How the Looting of the Business Corporation Became the U.S. Norm and How Sustainable Prosperity Can Be Restored (Oxford: 2020).
[7] Joan Farre-Mensa, Roni Michaely, Martin Schmalz, “Financing Payouts,” Ross School of Business Paper No. 1263 (December 1, 2020), citado por Matt Stoller,” How to Get Rich Sabotaging Nuclear Weapons Facilities,” BIG, January 3, 2021.
[8] Matt Stoller, ibid. Ver também o seu artigo “Crime Shouldn’t Pay: Why Big Tech Executives Should Face Jail,” BIG, December 20, 2020.
[9] George Akerloff and Paul Romer, “Looting: The Economic Underworld of Bankruptcy for Profit,”
[10] Sheila Bair e Lawrence Goodman, “Corporate Debt ‘Relief’ Is an Economic Dud”, Wall Street Journal, January 7, 2021.
[11] Desai, Radhika. 2020.’The Fate of Capitalism Hangs in the Balance of International Power’. Canadian Dimension, 12 October. Ver também Geoffrey Gardiner, Towards True Monetarism (Dulwich: 1993) e The Evolution of Creditary Structure and Controls (London: Palgrave, 2006) e o grupo póskeynesiano Gang of 8 popularizou a expressão “creditary economics” na década de 1990.
*Presidente do Instituto para Estudo das Tendências Econômicas de Longo Prazo (ISLET). Professor de Economia na Universidade do Missouri. Autor de “J is for Junk Economics” (2017), “Killing the Host” (2015), “The Bubble and Beyond” (2012), “Super-Imperialism: The Economic Strategy of American Empire (1968 & 2003)”, entre outros. Conselheiro econômico de governos e agências econômicas na Islândia, Letônia e China.
Fonte: Outras Palavras