Em entrevista ao Portal do Sintaema, Gilmar Mauro, da coordenação nacional do MST, fala sobre o legado de luta do Movimento Sem Terra (MST), como o passado colonizador e escravista pavimentou o cenário de violência e morte no campo e o que está em jogo com a instalação da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) contra o MST.
“As perseguições ao MST e toda essa criminalização, violência e as milhares de mortes brutais que ocorreram ao longo de sua história são parte de uma lógica que as classes dominantes brasileiras, em particular o latifúndio, empreenderam desde a colonização e que atravessou gerações (…) Essa perseguição das classes dominantes é uma perseguição à classe trabalhadora como um todo, uma lógica que começa nas Capitanias Hereditárias, vai para as Sesmarias e se transforma no grande latifúndio. Lá a exportação era para a Metrópole, hoje, hoje é a chamada economia de Commodity, para diferentes partes do globo”, afirmou Mauro.
E emenda: “Diante disso, lutar pela Reforma Agrária é lutar em defesa da terra, claro, sem perder de vista a agroecologia e o uso das tecnologias nesse processo, com vistas a aumentar a produtividade e diminuir a penosidade de quem realiza esse trabalho. Tudo com foco na produção saudável, sem veneno, e de modo a criar condições sociais e econômicas com muito mais equidade e igualdade”.
Para a direção do Sintaema, a instalação de uma CPI é um claro ataque não só ao MST, mas a todos e todas que lutam por uma sociedade mais humana e menos desigual. “Atacar quem produz alimento saudável com ínfimos recursos e ainda partilha o pouco que tem, só serve para manter privilégios de classe e prejudicar todos aqueles que atuam para ajudar quem mais precisa”.
Quem é o MST?
O Movimento Sem Terra é um movimento social de massa autônomo que está organizado em 24 estados nas cinco regiões do país e soma cerca de 450 mil famílias que conquistaram a terra por meio da luta e organização dos trabalhadores rurais.
Uma entidade que se firma pela defesa de uma Reforma Agrária Popular, que tem como base uma produção agrícola de matriz agroecológica. Priorizando a produção de alimentos saudáveis para o mercado interno, combinada com um modelo econômico que distribua renda e respeite o meio ambiente.
Confira a entrevista com Gilmar Mauro na íntegra:
Portal Sintaema – O MST possui uma longa história de luta por reforma agrária e a defesa de uma outra sociedade. Ao mesmo tempo, ao longo desse tempo, sofreu com a criminalização, em especial da mídia de referência. Hoje, se posiciona como uma entidade auto sustentável e que surpreende com ações de sua força como a distribuição de toneladas de alimentos em crises, como foi a pandemia. Como avalia essa trajetória?
Gilmar Mauro – O MST possui uma longa história de luta por reforma agrária e a defesa de uma outra sociedade. Ao mesmo tempo, ao longo desse tempo, sofreu com a criminalização, em especial da mídia de referência. Hoje, se posiciona como uma entidade auto sustentável e que surpreende com ações de sua força como a distribuição de toneladas de alimentos em crises, como foi a pandemia. Como avalia essa trajetória?
Primeiro, o MST surgiu com o objetivo de luta pela terra, por Reforma Agrária e por transformação social, por entender, que a luta pela terra, pela reforma agrária é parte da luta política geral e que não só o MST poderia fazê-lo, mas também construir alianças com amplos setores da classe trabalhadora, porque a reforma agrária não é uma pauta só dos sem terra, é uma luta de toda sociedade brasileira.
Segundo, o MST faz luta não por achar bonito, ainda que a luta tenha seu viés lúdico, mas porque esse foi o caminho para travar o embate com o Estado brasileiro e a classe dominante. Vale lembrar que a luta também tem seu aspecto pedagógico, porque foi e é através da luta que muitos atravessam um processo de transformação e se convertem em sujeitos políticos atuantes e históricos. Ou seja, a luta forma e transforma.
E, terceiro, foram inúmeras as conquistas históricas obtidas pela luta do MST Brasil afora, e essas conquistas são de todos e todas que, unidos, construíram os caminhos para isso. Tudo isso baseado na ideia de que, seja para os sem terra ou para os assentados, enquanto não houver Reforma Agrária no Brasil ou enquanto houver uma família sem terra, neste país, somos todos e todas sem terra. E a organização para pavimentar essas ideias é central para o MST.
E aqui vale destacar que essa luta e organização não começou conosco – antes de nós os quilombolas, movimentos de camponeses e povos originários foram desbravadores – e nem se encerrará conosco. E todo esse legado não só nos ensinou muito para o enfrentamento dos dias de hoje como deixou claro o nosso papel em imprimir nossa contribuição no processo de luta por transformação social e por uma reforma agrária popular. E neste ponto, o MST tem em mente que qualquer projeto deva passar pelo investimento pesado em Educação, modelos de produção – com destaque para a agroecologia -, solidariedade e nas relações internacionais.
No que se refere a agroecologia, o MST tem desmontado com números concretos que é possível alimentar milhões com uma produção agroecológica, o que evidencia outro ponto muito trabalhado pelo MST: a saúde. Nossa experiência revela que não há contradição entre produção, crescimento e saúde. E a pandemia escancarou isso.
Nós do MST temos um princípio simples: Se queremos comer abacate precisamos plantar abacateiro. Se queremos uma outra sociedade – que defenda a vida, sem violência ou qualquer forma de preconceito seja de etnia e gênero – é preciso semear e cultivar esses valores. E para o MST isso é fundamental.
Portal Sintaema – Por que o MST é tão perseguido? Do que a elite, em especial o agro, tem medo?
Gilmar Mauro – As perseguições ao MST e toda essa criminalização, violência e as milhares de mortes brutais que ocorreram ao longo de sua história são parte de uma lógica que as classes dominantes brasileiras, em particular o latifúndio, empreenderam desde a colonização e que atravessou gerações. Se pegarmos jornais de São Paulo, do final do século XIX, nos anos de 1883 a 1885, iremos verificar manchetes do tipo “Escravos fugitivos levam o pânico a fazendeiros”. Então, esse tipo de construção atravessou a história e construiu uma concepção que tem suas consequências até os dias de hoje.
Lembrando que todas as lutas pela terra foram duramente reprimidas no Brasil. Vale lembrar das Ligas Camponesas, as primeiras a pautar a Reforma Agrária no país, que foram exterminadas pela Ditadura Militar de 1964. Então, essa perseguição das classes dominantes é uma perseguição à classe trabalhadora como um todo, uma lógica que começa nas Capitanias Hereditárias, vai para as Sesmarias e se transforma no grande latifúndio. Lá a exportação era para a Metrópole, hoje, hoje é a chamada economia de Commodity, para diferentes partes do globo.
A história mostra que sempre enfrentamos uma brutal criminalização. Só para se ter uma ideia, essa é a quinta Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que o MST enfrenta. E o que essa CPI quer é escamotear, tirar a atenção da CPI do 8 de Janeiro – quando da tentativa de golpe – porque muitos dos apoiadores daquele movimento de janeiro e de outras tentativas de golpe no Brasil são do agronegócio. E como antes, passaremos por mais esse momento com unidade, resistência e munidos de nossos valores.
Vale destacar que essa investida contra o MST também tem como foco enfraquecer nossa luta pór outra sociedade, não esqueçamos que são quase 400 anos de escravidão e 500 anos de latifúndio no Brasil. É disso que se trata, porque debater modelo de sociedade significa debater o modelo de produção e não caímos naquela balela do “Agro é Tec” ou do “Agro é pop”. Esse agro que muitos alardeiam por aí é sustentado pelo povo brasileiro, seja pelos créditos bilionários que são concedidos ao setor, seja pelo subsídio completo, como o não pagamento de impostos – por aqueles que exportam commodities – faz com que grande parte da renda do povo brasileiro seja transferida para esses setores que na maioria das vezes nem moram no Brasil e só pisam em solo brasileiro para colher seus lucros, a partir do que classificamos de agricultura predatória.
Diante disso, lutar pela Reforma Agrária é lutar em defesa da terra, claro, sem perder de vista a agroecologia e o uso das tecnologias nestes processo, com vistas a aumentar a produtividade e diminuir a penosidade de quem realiza esse trabalho. Tudo com foco na produção saudável, sem veneno, e de modo a criar condições sociais e econômicas com muito mais equidade e igualdade.
Portal Sintaema – O autor da máxima, “vamos passar a boiada, lidera hoje uma CPI contra o MST. Isso desencadeou uma onda de apoio de amplitude internacional. Isso reflete que tudo feito até aqui valeu a pena?
Gilmar Mauro – Bom. Quem compõe essa CPI? O presidente da CPI é investigado pela Polícia Federal, o deputado Ricardo Salles não fica atrás, e vale lembrar que não faz muito tempo, fez campanha dizendo que tinha balas para matar sem terra. Um criminoso. Aliás, o que devemos pensar e estimular é a criação de uma CPI que investigue os crimes do latifúndio no Brasil, crimes contra os povos originários, contra os sem terra, os crimes ambientais, grilagem de terras, a fiscalização do uso de recursos públicos que eles recebem por meio de subsídios e toda a contaminação pelo uso brutal de veneno na produção.
Nossa avaliação é que estamos conseguindo expor na CPI esses vários temas, mas o enfrentamento dele não irá avançar com aquele palco, aquele teatrinho de mal gosto. Será com a sociedade, no debate com ela sobre o que de fato está em disputa. Vale destacar que o tema da Feira do MST – que mobilizou mais de 300 mil pessoas- revela que estamos no páreo do enfrentamento ideológico nacional e internacional. E nossa avaliação é de que é possível fazer com que essa CPI se converta em um tiro no pé e, para isso, o envolvimento de todos os setores da classe trabalhadora serão fundamentais neste embate. Mas, desde já, agradecemos a solidariedade das milhares de entidades e sindicatos como o Sintaema que perfilam ao nosso lado em mais essa batalha.