Na última terça-feira (22), Dia Mundial da Água, completou um ano que a fábrica de engarrafamento de água da empresa francesa Bonafont, do Grupo Danone, deixou de funcionar no estado de Puebla, no México.
Organizados na Frente dos Povos em Defesa da Terra e da Água – Morelos, Puebla e Tlaxcala, membros de 20 comunidades Cholultecas realizaram a ocupação das instalações da planta em 22 de março de 2021 para impedir o funcionamento da fábrica localizada na comunidade de Santa María Zacatepec, município de Juan C. Bonilla, a 20 quilômetros da capital Puebla.
Com pedras e terra, os indígenas fecharam os acessos ao prédio da fábrica. Quando entraram na empresa, a primeira medida adotada pelos ocupantes foi lacrar os poços, cortar os cabos das bombas e realizar um ritual com milho e pétalas de flores. Depois disso, fecharam definitivamente o poço com cimento.
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Em conjunto, os povos reivindicaram: “Nunca mais essa empresa vai voltar a extrair uma gota mais de água”, como afirmou Miguel López Vega, integrante da Frente.
Segundo o integrante da Frente e representante do povo Náhuatl de Zacatepec no Conselho Indígena de Governo e no Congresso Nacional Indígena, num primeiro momento, a administração da Bonafont acreditava que a ocupação só duraria algumas horas. No entanto, os indígenas já tinham a intenção de frear permanentemente as atividades da empresa na região.
A ocupação do espaço durou quase um ano. Na madrugada do último 15 de fevereiro, a Guarda Nacional e a polícia invadiram o espaço com violência e destruíram a ocupação e o centro cultural que funcionava no local.
“Eles chegaram à 1h20 da manhã com a Guarda Nacional na Casa dos Povos [nome dado ao espaço criado pelos ocupantes] para expulsar os companheiros. Foi uma grupo especializado do Governo Federal, a Guarda Nacional e a Polícia Estadual que participaram do despejo, com a ordem de um juiz”, contou Vega.
Segundo o militante, os agentes atuaram de forma truculenta e ameaçaram aqueles que ocupavam o espaço. “Eles chegaram armados e expulsaram os companheiros com as mãos na nuca, apontando armas para eles”.
Nem mesmo os animais puderam ser levados pelos indígenas. “Nossos animaizinhos ficaram lá dentro. Cordeiros, galinhas, coelhos, gambás, uma produção que temos de cogumelos, todo o nosso equipamento da Altepelmecalli (Casa dos Povos), TV, o equipamento de uma rádio comunitaria, nosso equipamento de saúde, medicamentos, computadores, bicicletas, tudo isso ficou do lado de dentro”, explicou Vega.
Na manhã do mesmo dia, a polícia entregou as instalações ao funcionários da empresa, que a cercaram com grades e desarmaram o acampamento. Mas a campanha pelo encerramento das atividades da Bonafont na região ganhou força e se espalhou pelo país e a fábrica segue fechada até hoje.
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O governador de Puebla, Luis Miguel Barbosa Huerta, se pronunciou sobre o despejo. “Um juiz penal de controle decretou a restituição a favor da empresa Bonafont da fábrica de sua propriedade e realizou uma diligencia judicial, não por parte do Executivo, não ordenada pelo Executivo, mas uma diligencia judicial.”
Andrés Manuel López Obrador, presidente do México, que todos os dias faz um pronunciamento ao país, não se manifestou sobre o caso no dia da desocupação.
Durante o despejo, os povos que ocupavam o prédio bradaram palavras de ordem dizendo que os agentes podiam destruir o que haviam construído fisicamente, mas “não destruirão nem dobrarão a vontade de lutar pela água, que nada mais é do que a luta pela vida”.
Em comunicado público aos povos do México, a Frente declarou: “Continuamos firmes para garantir que esta empresa não reiniciará as operações em nosso território e continuaremos levando esta bandeira adiante até suas últimas consequências […] Estamos em assembleia permanente e convocamos à luta as irmãs do México e do mundo para boicotar os produtos da Danone que são feitos às custas da miséria e da pobreza dos mexicanos”.
Roubo da água
Segundo a organização Povos Unidos da Região Cholulteca e dos Vulcões, a Bonafont extraía mais de um milhão e 641 mil litros de água por dia. Este volume supera os valores permitidos pela Lei de Águas Nacionais e equivale à demanda de todo o município de Juan C. Bonilla, que tem mais de 23 mil habitantes.
Por conta do engarrafamento desenfreado de água, algumas áreas tiveram baixa considerável nos níveis dos lençóis freáticos, enquanto outras tiveram seus poços totalmente secos, impedindo que a população tenha acesso à água, direito garantido pela Constituição Mexicana.
Segundo Vega, na região era possível encontrar água em poços comunitários de 15 ou 30 metros de profundidade, mas desde que a empresa se instalou, essa possibilidade deixou de existir.
A luta não é de agora
Para tomar as instalações da fábrica, os povos organizados fizeram uma pesquisa sobre as concessões de extração de água e descobriram que Bonafont não contava com nenhum contrato. “O que existe é um documento em nome da Arcoiris, uma empresa que se fixou aqui em 1992, quando Carlos Salinas de Gortari [ex presidente mexicano, do PRI] privatizou a água […] o prefeito de Juan C. Bonilla em mandato em 1992 negou a permissão do município, mas o Estado colocou outro no seu lugar, e essa foi a pessoa que deu a autorização para uso de solo e construção da fábrica”, disse López Vega.
A denúncia de roubo da água acontece desde 1997. Posteriormente, as comunidades fizeram um primeiro bloqueio à Bonafont, mas não conseguiram juntar força suficiente para fechá-la. Foi só em 2021 que o panorama começou a mudar. Em março, as entradas da fábrica foram barradas e em agosto do mesmo ano 20 comunidades Cholultecas realizaram um julgamento público dos responsáveis pelos saques e seus cúmplices, que foram considerados culpados.
“Protegidos pelos princípios de autonomia, autodeterminação e preservação da Mãe Terra e como medida de reparação por todos os danos ecológicos que esta empresa da morte causou e as graves violações dos direitos humanos dos mexicanos, decidimos reapropriar a terra na qual a empresa saqueadora trabalhava”, declararam as comunidades.
A ocupação da fábrica foi respaldada por um decreto indígena que contou com mais de 6 mil assinaturas dos povos originários e camponeses da região, além dos carimbos de autoridades tradicionais reconhecidas pelo 2º artigo da Constituição Mexicana, que reconhece o direito à autodeterminação das comunidades indígenas.
Altepelmecalli: “nós mandamos, nós decidimos”
Da ocupação da fábrica de extração da Bonafont surgiu a Altepelmecalli (Casa dos Povos, em Náhuatl), um espaço comunitário de reparação e reconstrução dos laços da região.
Durante sete meses, foram levadas a cabo na planta da ex-fábrica diversas atividades nas áreas de saúde, educação, esportes, arte, cultura e agroecologia. Segundo López Vega, o objetivo foi, desde um primeiro momento, “transformar aquele espaço de morte e de roubo da água em um espaço de vida, educação, formação e produção de alimentos para os nossos povos”.
Direito à água
No México, o direito à água faz parte da Constituição Política desde 8 de fevereiro de 2012, quando foi reformado o artigo 4º, que diz:
“Toda pessoa tem direito ao acesso, fornecimento e saneamento de água para consumo pessoal e doméstico de forma suficiente, saudável, aceitável e acessível. O Estado garantirá esse direito e a lei definirá as bases, os apoios e as modalidades para o acesso e uso equitativo e sustentável dos recursos hídricos, estabelecendo a participação da Federação, dos estados e dos municípios, bem como a participação dos cidadãos na realização dos referidos fins”.
De acordo com a Lei de Águas Nacionais, para proteger a qualidade das bacias e aquíferos, o Executivo Federal pode expedir um decreto que proíba a exploração e o uso ou aproveitamento das águas nacionais em caso de sobre-exploração, sejam de superfície ou subsolo, que tenham causado seca ou escassez extrema.
Os povos afetados acusam o presidente Andrés Manuel López Obrador, o governador de Puebla, Luis Miguel Barbosa Huerta, e o presidente municipal de Juan. C. Bonilla, José Cinto Bernal, de permitir que a empresa viole as leis e roube água das populações que vivem na região da fábrica.
O outro lado
O Brasil de Fato entrou em contato com os governos municipal, estadual e federal questionando sobre as legislações vigentes referentes à extração de água, a ocupação e o despejo da fábrica, as denúncias de violações da Danone e se havia algum registro de autuação contra o grupo francês por extração ilegal da água e sobre os impactos dos megaprojetos para as comunidades do entorno e o meio ambiente.
Os governos de José Cinto Bernal, Luis Miguel Barbosa Hurta e Andrés Manuel López Obrador não responderam às demandas solicitadas até o fechamento desta reportagem. A empresa francesa Bonafont, do Grupo Danone, também não se pronunciou sobre as denúncias de extração ilegal nem sobre o impedimento de funcionamento da planta de Juan C. Bonilla.
Em caso de manifestação por parte dos governos ou do Grupo Danone, o espaço se mantém aberto.
“Não aceitaremos a criminalização dos defensores da água e a impunidade dos criminosos que fazem disso um negócio”
A adesão a um modelo de desenvolvimento baseado no extrativismo não é uma exclusividade do governo de Andrés Manuel Lopez Obrador. Durante parte importante do século 20, o país foi um grande exportador de petróleo; atualmente, no entanto, a aposta do Estado mexicano tem sido impulsar o fortalecimento de outras áreas da infraestrutura física do país.
Isso inclui obras nos setores mineiro, turístico, enérgico e agroindustrial, como os projetos Corredor Interoceânico, Refinaria de Dos Bocas e Trem Maya, que prevê a construção de 529 km de estradas férreas que atravessarão comunidades indígenas de origem Maya dos estados de Tabasco, Campeche, Chiapas, Yucatán e Quintana Roo.
Para Samantha César, que integra o movimento de resistência à construção da termoelétrica de Huexca, no estado de Morelos, a política do governo de centro-esquerda se caracteriza por “buscar o crescimento econômico através de projetos que violentam gravemente o meio ambiente, administrando o extrativismo por meio de corredores industriais, zonas prioritárias para o tipo de desenvolvimento que eles advogam, mas que só nos traz despojo e destruição”.
Segundo a militante e delegada do Congresso Nacional Indígena, o que distingue a gestão de López Obrador dos governos anteriores é um aumento da violência contra os grupos de autodefesa territorial: “Houve um aumento dos níveis de agressão contra os povos através de discursos de ódio contra todos aqueles que nos opomos ao governo […] utilizando a legitimidade dos votos para violentar os direitos dos povos indígenas”.
Caravana pela Água e pela Vida
Povos e organizações de diversos estados deram início à “Caravana pela água e pela vida: povos unidos contra a desapropriação capitalista”, para denunciar a escalada repressiva de desapropriações e saques contra as comunidades indígenas, vilarejos e meio ambiente.
Entre os dias 22 de março, Dia Internacional da Água, e 24 de abril, uma caravana organizada pela Frente irá rodar o país denunciando os impactos dos megaprojetos na vida da população e o território.
O objetivo principal da Caravana é replicar o que foi feito em Juan C. Bonilla pelos Povos Unidos: “entender que o povo manda, que através da autodeterminação podemos cancelar, fechar, expulsar os projetos de morte. Durante a Caravana, iremos a zonas dominados por lixões tóxicos, mineradoras, termelétricas, lugares de roubo de água e onde as imobiliárias arrebatam a terra dos povos”, diz Vega.
A Caravana teve início no município de Juan C. Bonilla, Puebla, onde está ocorrendo a luta contra a exploração de poços e aquíferos pela empresa Bonafont, e terminará em 24 de abril na comunidade de Cuentepec, Morelos, passando pela Cidade do México e pelos estados de Guerrero, Veracruz, Querétaro e Oaxaca, além de contar com uma mobilização virtual internacional.
Fonte: Brasil de Fato