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A cara da fome no Brasil é uma mulher negra

Por Oscar Valporto

O 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, lançado no começo do ano, apontou que 58,7% da população brasileira convive com insegurança alimentar em algum grau – leve, moderado ou grave (fome). Mas este percentual sobe para 63% nos domicílios chefiados por mulheres – 19,3% em situação de fome. Vale o mesmo quando o recorte é a cor da pele: 64% dos domicílios com pessoas de referências pretas ou pardas sofrem com insegurança alimentar; 18,1% passam fome. “A pesquisa prova o que a gente vê: a cara da fome é uma mulher negra”, afirmou Selma Glória, coordenadora do Programa de Gênero, Geração e Igualdade Racial do MOC (Movimento de Organização Comunitária), na região semiárida da Bahia, em debate no Encontro Nacional contra a Fome, nesta terça (21/06).

Selma Glória participou do painel “Do urbano ao rural: por que a fome atinge mais as mulheres?” ao lado da assistente social Luna Arouca, coordenadora da Frente de Segurança Alimentar da organização Redes da Maré, no Rio de Janeiro, e do economista Francisco Menezes, da ActionAid Brasil, com mediação da jornalista Bela Reis. “Durante a pandemia, ficou ainda mais evidente como a insegurança alimentar atinge mais as mulheres porque são elas as responsáveis pelos domicílios mais vulneráveis, onde crianças e idosos dependem delas”, disse Luna Arouca, que detalhou o trabalho da organização para minimizar os efeitos do avanço da covid-19 no complexo de favelas da Maré, na Zona Norte do Rio, onde moram cerca de 140 mil pessoas.

O Encontro Nacional contra a Fome, organizado pela Ação da Cidadania, vai até esta quinta (23) e reúne representantes de entidades envolvidas na promoção da segurança alimentar e especialistas para debater a fome no Brasil, suas causas e consequências, e também saídas e soluções para frear o avanço da fome no país. Os debates podem ser acompanhados pela internet ou presencialmente na sede da Ação da Cidadania, na Gamboa, na zona central do Rio. Os números recém divulgados pela Rede Penssan – com apoio de ActionAid e Ação da Cidadania, além de outras organizações – sobre a insegurança alimentar no Brasil, onde 33 milhões de pessoas não têm o que comer, guiam os debates do encontro.

Para Selma Glória, os números refletem o agravamento de uma crise. “A covid-19 aprofundou a desigualdade, a pobreza e a fome. Mas não criou essa situação essa cruel: ela já vinha se agravando nos últimos anos, atingindo a população do Semiárido, sobretudo as mulheres, sobretudo as mulheres negras”, destacou a coordenadora do MOC, entidade com sede em Feira de Santana e atuação em mais de 20 municípios na região semiárida da Bahia.

Durante a pandemia, o MOC teve atuação intensa na organização produtiva das mulheres e na articulação da campanha “É tempo de cooperar – Solidariedade por um sertão susto”, que soma esforços para atenuar a situação de vulnerabilidade alimentar, psicossocial e econômica. “Com a pandemia, vieram dificuldades no acesso aos alimentos, a redução das políticas de apoio à agricultura familiar, desestruturação das redes de comercialização de alimentos”, lembrou Selma. “A fome também é uma escolha política”, enfatizou, lembrando dados do inquérito nacional feito pela Rede Pensann, apontando que a fome atingiu 21,8% dos domicílios de agricultores familiares e pequenos produtores rurais.

A coordenadora do MOC enfatizou os cortes feitos pelo governo no Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), no Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), nos programas de assistência técnica aos pequenos produtores e na paralisação do Programa Cisternas. “Faltam 370 mil cisternas para consumo humano e 800 cisternas para produção de alimentos. A pesquisa também prova que a insegurança hídrica provoca insegurança alimentar e assistimos isso diariamente no Semiárido”, afirmou Selma Glória. “E, mais uma vez, são as mulheres que estão à frente da maioria dessas pequenas plantações; muitas delas, mulheres negras”, acentuou,

O agravamento da situação de insegurança alimentar constatada no campo durante a pandemia foi semelhante nas áreas urbanas. “Houve um impacto imediato com a desestruturação econômica das famílias que sobrevivem, na grande maioria, de trabalhos informais tremendamente afetados pela pandemia. As Redes da Maré reagiram rapidamente com foco na compra e distribuição de cestas básicas e reforço no atendimento à população em situação de rua”, contou Luna Arouca.

Em 2020, a organização cadastrou 19.617 famílias (mais de 50 mil pessoas) em situação de insegurança alimentar no Complexo da Maré; 17.648 famílias foram atendidas pelo projeto ‘Maré Diz Não ao Coronavírus”, recebendo alimentos e material de proteção. “O atendimento mostra bem essa desigualdade de gênero e cor na insegurança alimentar”, frisou a assistente social, mostrando dados do projeto: 79,1% das famílias cadastradas eram chefiadas por mulheres; entre as famílias atendidas, as pessoas de referência, em maioria, se declaram pardas (48%) ou preta (20,6%). A desigualdade se repetiu em 2021 quando o projeto atendeu 10.716 famílias: 84% com mulheres como pessoa de referência; 70% chefiadas por pessoas negras (autodeclaradas pardas ou pretas).

A coordenadora da Frente de Segurança Alimentar da Redes da Maré destacou que foi determinante para o sucesso da ação, que teve apoio de instituições e outras ONGs, a articulação ter sido feita por uma organização local. “Por conhecermos a Maré, chegamos rapidamente às famílias mais vulneráveis que moram em locais como a Favela da Galinha ou Salsa e Merengue. Essa agilidade deveria ser aproveitada pelo poder público para o desenvolvimento de políticas contra a fome e também para outras políticas públicas”, argumentou Luna Arouca, acrescentando que a Redes da Maré tem como prioridade a construção de hortas e cozinhas comunitárias no complexo e a realização de feiras livres para a comercialização de alimentos produzidos na comunidade e em regiões próximas por pequenos produtores.

Analista de políticas da ActionAid, o economista Francisco Menezes disse que será discutida com a Rede Penssan (Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional) a possibilidade de o levantamento cruzar os dados sobre gênero e cor. “Assim, poderemos concluir com números o que a percepção já nos mostra: que as mulheres negras são as que mais convivem com insegurança alimentar”, afirmou.

Menezes também destacou o papel das organizações da sociedade civil no enfrentamento da crise social e econômica do Brasil. “Foi feito um tremendo esforço já que a crise também atinge as ONGs. Mesmo assim, fica a constatação de insuficiência para fazer frente à ausência do estado, à ausência de responsabilidade do estado no enfrentamento da insegurança alimentar”, frisou o analista da ActionAid, para quem não bastará repetir o passado, com políticas que retiraram o Brasil do Mapa da Fome. “É preciso avançar e, para isso, o estado precisa trabalhar mais perto dessas organizações, aproveitando esse aprendizado. E também o país necessita potencializar essas iniciativas lideradas por mulheres do campo e da cidade, com a integração dessas organizações para ações conjuntas”, defendeu Menezes.

Fonte: #Colabora

*Oscar Valporto é carioca e jornalista – carioca de mar e bar, de samba e futebol; jornalista, desde 1981, no Jornal do Brasil, O Globo, O Dia, no Governo do Rio, no Viva Rio, no Comitê Olímpico Brasileiro. Está de volta ao Rio após oito anos no Correio* (Salvador, Bahia), onde foi editor executivo e editor-chefe. É criador da página no Facebook #RioéRua, onde publica crônicas sobre suas andanças pela cidade.