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Saneamento rural na América Latina | Apenas 53% da população tem acesso seguro à água

Por Priscila Neves Silva

Na América Latina, segundo dados do JMP, 75% da população total tem acesso  seguro à água, sendo que na região rural esse numero cai para 53%. No que se refere ao saneamento, apenas 34% da população total tem acesso seguro ao serviço. Já para a região rural, não há dados sobre acesso seguro, e apenas 55% da população tem acesso considerado de nível básico (WHO/UNICEF, 2021).

Face a esse quadro, foi lançado, pela agência Suíça para o Desenvolvimento e a Cooperação (COSUDE) em parceria com o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), em 2021, o programa SIRWASH que tem como objetivo “melhorar os entornos de inovação e o intercâmbio de conhecimento e normas propícios para promover a capacidade necessária para prestar serviços de água, saneamento e higiene sustentáveis e de qualidade para as comunidades rurais, especialmente para populações vulneráveis e menos favorecidas”. Para isso, o programa tem 3 componentes básicos: apoio na elaboração de políticas integrais e sustentáveis com intercambio sul-sul, fortalecimento das capacidades institucionais e promoção de soluções inovadoras. Serão desenvolvidas experiências piloto no Brasil, Bolívia, Haiti e Peru.

Em junho, aconteceu, em Lima, o primeiro encontro desse programa, visando ao intercâmbio de experiências e à promoção do diálogo entre os países. Além de representantes dos países envolvidos no projeto, o evento contou com a participação de representantes da Colômbia e do Paraguai, de cooperações internacionais como a suíça e a espanhola, do relator especial das Nações Unidas para os DHAES e de representantes do BID e do Banco Asiático de Desenvolvimento.

Cada país apresentou suas experiências nesse campo, tendo se observado relatos de aspectos considerados positivos, como ações descentralizadas e a  participação da comunidade nos processos de tomada de decisão, desde a formulação da política até a gestão e manutenção do sistema. Colômbia e Paraguai chamaram a atenção para a importância da participação das mulheres, relatando uma melhor gestão do serviço quando elas atuam ativamente. Interessante observar que, no Paraguai, país considerado como um dos que melhor promove o acesso à água para a população rural, o programa, que existe há 50 anos, conta com a participação ativa das comunidades, através das juntas de saneamento, em todas as fases de execução incluindo a decisão sobre o uso dos recursos financeiros. Segundo a representante do país, os processos de tomada de decisão começam na comunidade e a opções de tecnologia são consensuadas com todos os atores. Dessa forma, defende que ações participativas são transformadoras.

Um dos pontos destacado como essenciais para a sustentabilidade das ações foi a necessidade de fortalecimento institucional e, em especial, dos atores municipais. A capacitação em nível local foi indicada como uma ação necessária. No entanto, a rotatividade dos funcionários que trabalham no setor, comum nos países da América Latina, foi colocada como ameaça na busca da sustentabilidade. Além disso, para assegurar a continuidade das ações, foi destacada a necessidade de implementação de ferramentas digitais, em especial de sistemas de informação, capazes de auxiliar na identificação das principais necessidades de cada localidade, fazendo, assim, um correto diagnóstico situacional e um uso mais adequado dos recursos disponíveis. No Haiti, um sistema de informação – SIEPA – está sendo implementado com o auxilio da cooperação internacional, e na Colômbia existe, desde 2017, o Sistema de Informação de Água e Saneamento Rural – SIASAR.

Outro fator importante considerado foi o fortalecimento do diálogo entre os vários atores que atuam no setor – profissionais do setor de saneamento, reguladores, profissionais da saúde, da fiscalização, prestadores de serviço, sociedade civil, agências de cooperação, academia, entre outros – através de um diálogo horizontalizado, com identificação dos papéis de cada um e estabelecimento de ações de seguimento e monitoramento. Foi salientado como importante, também, que os modelos a serem implementados possam utilizar tecnologias versáteis e serem replicadas e escalonadas, respeitando as diferenças contextuais. Interessante comentar que Bolívia reconheceu, em sua constituição, o acesso à água e ao saneamento como diretos humanos e que isso repercute em ações que visam assegurá-lo.

Alguns participantes, como o Brasil, deram destaque à necessidade de realizar ações integrais e holísticas, capazes de reconhecer que o acesso à água para populações rurais passa por outras questões, como produção de alimento para subsistência e geração de renda. Além disso, foi salientado, pelo relator especial das Nações Unidas para o DHAES, que a relação que essas populações têm com a água difere da população urbana, uma vez que usam a água como fonte de lazer, como recurso para atividades culturais e socais, além de tirar do rio parte do seu alimento. Dessa forma, destacou a importância de reconhecer as diferentes demandas e necessidades, e pensar o acesso à água valorizando os outros usos essenciais, de maneira a preservar do modo de vida dos diferentes grupos populacionais que vivem nessas regiões. Portanto, é necessário garantir um enfoque baseado em diretos.

Um outro assunto discutido foi a mudança climática e seu impacto no acesso à água das populações rurais. Enquanto alguns locais já sofrem com secas mais intensas e duradouras, outras vivem o problema das inundações. Dessa forma, participantes conclamaram a refletir sobre e identificar ações capazes de mitigar os problemas que as mudanças climáticas podem trazer para os diferentes grupos populacionais. Nesse ponto, foi ressaltada a importância dos aquíferos como recurso estratégico para a gestão das secas, além do fortalecimento da governança. Sobre governança, foi discutida a necessidade de entendê-la como sendo capaz de fazer a “gestão da complexidade”. No que se refere as áreas rurais, foi citada a necessidade de reconhecer que as áreas são diferentes, umas mais dispersas, outras mais próximas entre si ou à região urbana. O Instituto Internacional de Água de Estocolmo (SIWI), organização que também participou do evento, contou da experiência que têm com a ferramenta de apoio à governança, WASHBAT, que auxilia no diálogo e na realização das ações entre os diferentes atores.

Outro ponto importante destacado foi o papel do acesso à água para o alcance dos objetivos de desenvolvimento sustentáveis. Os palestrantes ressaltaram que, para além do objetivo 6, o acesso à água se relaciona de forma transversal e intrínseca a vários outros objetivos da Agenda 2030 sendo, assim, essencial seu alcance para garantir o cumprimento dos demais. Dessa forma, chamaram a atenção para a necessidade de se ampliarem os investimentos no setor.

Com relação aos investimentos, é necessário destacar que, em nenhum dos países presentes, as empresas privadas atuam no saneamento das áreas rurais. Mesmo no Paraguai, considerado país modelo, o recurso vem do poder público. Peru, que possui um Programa Nacional de Saneamento Rural desde 2012, salientou que houve aumento de financiamento público para o setor. Em alguns países, como Haiti, Peru e Colômbia, há investimento de agências de cooperação internacional – a suíça, a espanhola e a japonesa – para além do investimento público. A cooperação japonesa desenvolveu, na região amazônica do Peru, uma plataforma fluvial de distribuição de água, tecnologia considerada inovadora e adequada às características da região.

Um ponto discutido foi a necessidade de se utilizarem as tarifas como forma de coesão social, pensado no modelo de subsídio cruzado. Foi levantada a hipótese, também, de se pensar não apenas nas inovações tecnológicas como também financeiras através, por exemplo, de microcréditos social e institucional. Independente disso, foi enfatizada a necessidade de o financiamento dessas ações estarem bem definidos na agenda nacional de cada país, fortalecendo a ideia de que a participação do financiamento público é essencial para garantir acesso adequado à água e ao saneamento para as populações que vivem nas áreas rurais.

O evento de Lima reiterou a complexidade do saneamento nas áreas rurais e a necessidade de o tema alcançar maior prioridade na agenda dos países, especialmente em um contexto de mudança climática e de pandemia da Covid-19. Reconhecendo que os contextos político, econômico e ambiental diferem muito entre os países que compõem a região, fica o desafio de conseguir identificar políticas, programas e ações que possam ser integrais, sustentáveis e inovadoras.

Referências:
WHO/UNICEF. Progress on household drinking water, sanitation and hygiene 2000-2020:    five years into the SDGs. 2021. Geneva: World Health Organization (WHO) and the United Nations Children’s Fund (UNICEF)

[1] Autora:
– Priscila Neves Silva – Doutora e Mestre em Saúde Coletiva pelo Centro de pesquisas René Rachou, Fundação Oswaldo Cruz, atualmente faz Pós-Doutorado junto ao grupo de pesquisa de Direitos Humanos e Políticas Públicas em Saúde e Saneamento da mesma instituição. É mestre em Epidemiologia e Saúde Pública pela Universidad Rey Juan Carlos (Espanha) e graduada em Fisioterapia pela PUC-MG.

Fonte: ONDAS