Home Destaque A financeirização do saneamento em São Paulo: o que vem pela frente?

A financeirização do saneamento em São Paulo: o que vem pela frente?

Por André Roncaglia*

O “futuro plano de eficiência” da Sabesp vai “redefinir a relação com sindicatos, otimizar benefícios e políticas de remuneração”. Sob a “cultura de dono”, alinhará “incentivos por performance”, o que implica corte no quadro de funcionários e elevação da remuneração da diretoria executiva.

O objetivo de otimizar custos operacionais e aumentar o endividamento da Sabesp é elevar a distribuição de dividendos aos acionistas. Com taxa de juros brasileira em 10,5%, o contribuinte paulista antecipou o retorno 11% (em um dia) aos acionistas selecionados no ‘camarote VIP’ organizado pelo BTG.

O plano do governo paulista é criar um fundo de abatimento de tarifas com os recursos obtidos com a venda do controle da empresa. A previsão do governo Tarcísio era obter 30 bilhões de reais com a operação. Dados os vícios analisados no artigo anterior, o valor ficou em 14,7 bilhões de reais, menos da metade do previsto. Como esmola para distrair o público e justificar o silêncio da imprensa, haverá abatimento da tarifa social em 10% e da tarifa residencial em 1%. Além disso, a Sabesp não pagará polpudos dividendos até de 2029, quando a porteira será aberta.

A Faria Lima tenta tranquilizar o contribuinte, alegando que a eficiência será melhor para todos. Um relatório da XP atestou que a Equatorial é “uma companhia com sólido histórico de eficiência operacional em empresas estatais”. Será? 

Vejamos o histórico da empresa no Amapá. Quando a empresa assumiu a operação de saneamento, apenas metade da população tinha acesso a água tratada e meros 4,5% da população contava com coleta de esgoto — a média nacional era de 84,9% e 56%, respectivamente. O desperdício de água chegava a 80,3% (média nacional é de 37,8%). 

Para ganhar musculatura, a empresa priorizou “investimentos com impacto em geração de receita, aumento da arrecadação e combate às perdas para melhorar o fluxo de caixa, saneamento do cadastro de clientes e fortalecimento de ações de cobrança a fraudes.” As demonstrações financeiras da CSA – subsidiária de saneamento da Equatorial no Amapá – mostram que a empresa conseguiu elevar a receita de 92 milhões de reais para 150 milhões de reais, em seu primeiro ano completo de operação. Devido aos investimentos, o prejuízo subiu de 146 para 234 milhões de reais.

Desde a privatização dos serviços de saneamento no estado, em dezembro de 2021, a Equatorial aumentou três vezes a tarifa da conta de água no Amapá. No início de 2022, a Equatorial ainda atuava em “operação assistida” quando capitaneou a elevação de elevação de 50% na tarifa de água. Em julho de 2022, duas semanas depois de assumir efetivamente a operação, a Equatorial elevou novamente a conta em 12,23%. Cerca de um ano depois, em 13 de julho de 2023, veio outro reajuste de 6,79% para os amapaenses.

Em 2023, a companhia faturou 2,6 bilhões de reais e lucrou 2 bilhões de reais. A margem de lucro da primeira “empresa multiutilidades” é de 77%. Quem poderia imaginar que controlar as tarifas de um monopólio natural e cortar custos trabalhistas é altamente lucrativo. 

Como a edição do SNIS com dados de 2023 ainda está sendo elaborada pelo ministério, não sabemos se houve avanço ou não. A alienação do controle da Sabesp se deu, portanto, totalmente no escuro.

A situação da cobertura de serviços de saneamento no estado de São Paulo é muito diferente da amapaense. Em 2022, os índices de cobertura de água (98%), de esgoto (92%) e de tratamento de esgoto coletado (85%) deixam nítido que o contribuinte já amortizou o investimento estatal do estado desde 1973, quando a empresa foi fundada.

Esta é a assimetria antiestado da Lei das Estatais: o governo não pode indicar um aliado político à gestão da empresa, mas uma empresa privada por indicar um alinhado corporativo para privatizar a empresa. Do ponto de vista regulatório, a situação é ainda mais grave. O Projeto de Lei Complementar 35/2024 (enviado em 20 de junho) altera o regime jurídico das agencias
reguladoras estaduais (ARTESP e ARSESP). Trata-se, essencialmente, da extinção dos conselhos orientativos da Arsesp e consultivo da ARTESP, com relaxamento dos critérios para a nomeação de membros do conselho diretor. Prevê experiência em administração pública é muito mais importante para a função do que ter experiencia no correlato privado.

É uma clara tentativa de aparelhamento das agências reguladoras por pessoas ligadas ao setor econômico regulado, o que aumenta o risco de captura e de advocacia administrativa, favorecendo atos de corrupção e a instauração da porta giratória, em que o dirigente troca a ente regulador pela empresa regulada e vice-versa.

Há também elevado risco de usurpação de funções técnicas exclusiva de agentes de estado concursados. Servidores de carreira possuem maior estabilidade e não ficam tão sujeitos às investidas do poder econômico e vulneráveis a ameaças de qualquer espécie.Vimos um flagrante exemplo disso durante a CPI da Pandemia, quando o servidor concursado do Ministério da Saúde, Luís Ricardo Miranda – que denunciou o esquema de propina na compra das vacinas pelo desgoverno Bolsonaro.

Com efeito, a extinção de 24 funções de gerências técnicas exclusivas de deveriam ser regulados, facilitando a captura da estrutura do Estado por grupos privados. Neste sentido, a reforma das agências reguladoras guarda íntima relação com o processo de privatização da Sabesp, uma vez que ameaça a independência e tecnicidade desejadas, uma vez que a ARSESP será a responsável pela manutenção do equilíbrio econômico financeiro do contrato e a SP Águas gerencia as outorgas de captação da Sabesp, consumidora de 45 porcento de toda água disponível no Estado. Por todos esses elementos, percebe-se nitidamente porque o governo estadual empregou os seus melhores esforços para viabilizar, a toque de caixa e sem a efetiva participação social, a privatização altamente lucrativa para grandes corporações, bancos e instituições finance iras. É bem possível que, em 2029, a empresa peça reequilíbrio econômico-financeiro e exija elevação das tarifas para atingir as metas de
universalização até 2033.

Até lá, Tarcísio já espera ser presidente da República. Em troca do
financiamento da campanha presidencial do governador, o contribuinte paulista ganha alguns anos de tarifa mais baixa e um futuro incerto a partir de 2029.

*André Roncaglia é professor de economia da Unifesp, pesquisador associado do IBRE-FGV e doutor em economia do desenvolvimento pela FEA-USP. É co-autor de ‘Brasil, uma economia que não aprende’.

**Artigo publicado originalmente no Portal Carta Capital.