Mesmo aqueles que têm pouco recursos ou que não tem recurso precisam ter acesso à água e ao esgotamento sanitário e os gastos com estes serviços não podem impedir que outros direitos humanos, igualmente importantes sejam atendidos
Pode-se dizer que há praticamente consenso quanto à importância da universalização dos serviços de água e esgotamento sanitário. Porém, o entendimento sobre o que se considera universalização pode variar e isso vai se traduzir em resultados muito diferentes. Algumas questões ajudam a exemplificar essa dúvida. A primeira delas é se 99% de abastecimento de água e 90% de esgotamento sanitário podem ser considerados universalização. E ainda, a área rural está ou não incluída nas metas da universalização? Estão incluídos os pequenos municípios e áreas de baixa densidade populacional? Há metas para a acessibilidade financeira aos serviços de água e esgotamento sanitário, com tarifa social para todas as pessoas que têm dificuldade financeira, com atendimento mínimo essencial em casos de impossibilidade de pagamento? E os territórios onde não há urbanização adequada? Há previsão de soluções alternativas? O atendimento das pessoas em situação de rua e demais demandas dos serviços de água e esgotamento sanitário nas esferas além do domicílio, incluindo a oferta de banheiros e bebedouros públicos, estão incluídas? Há metas para a desconexão das ligações cruzadas entre as redes de águas pluviais e esgotos, para evitar a situação de haver coleta e tratamento de esgotos, mas os corpos d’água permanecerem contaminados pelas ligações irregulares? Há metas para que se concretizem as conexões domiciliares, ou basta que exista a rede de água e esgotamento sanitário na rua onde está o domicílio? Há metas quanto à garantia de qualidade e continuidade do serviço para evitar as situações em que há tubulação de água, mas não há efetivamente água com pressão e frequência adequadas? É fácil imaginar que os resultados de um serviço teoricamente “universalizado” podem variar significativamente a depender da forma como se respondem a estas questões.
Quanto ao atendimento da área rural, fica patente a necessidade de sua inclusão nas metas de universalização, pois está justamente aí um dos principais componentes do atual déficit destes serviços. Segundo informações contidas no Plansab 2017 (Plano Nacional de Saneamento Básico) e no SNIS 2017 e 2020, o desafio da universalização dos serviços de água no Brasil é ampliar os serviços para 11,4 milhões de habitantes dos quais 65% residem em área rurais. Em relação ao esgotamento sanitário, é preciso atender a novos 55 milhões de brasileiros, dos quais 36% residem nas áreas rurais. Esse desafio é detalhado no estudo intitulado: “Análise das Populações Atendidas e Não Atendidas com os Serviços de Água e Esgotos no Brasil”, publicado em 2022 pela AESBE- Associação Brasileira das Empresas Estaduais de Saneamento.
Tem-se um grande desafio. Por um lado, as prestadoras dos serviços de água e esgotamento sanitário, de caráter público, historicamente se mantiveram relativamente distantes do atendimento rural face aos elevados custos, baixa expectativa de receita e complexidade operacional do atendimento da população, em especial nos casos em que a população rural está muito dispersa no território. O problema fica amplificado no caso de privatização, pois não se pode negar o pouco interesse que terá uma empresa privada, cujo foco central é ainda mais concentrado no resultado financeiro, em operar num local em que é alto o custo e baixa a receita. Por outro lado, há a carência de uma política pública para soluções descentralizadas, em especial para tratamento e disposição de esgotos, considerando que é inevitável melhorar a assistência técnica para a adoção de boas práticas no manejo dos esgotos na área rural. Existe um verdadeiro vácuo neste sentido e, em qualquer contexto, será fundamental a estruturação de uma política pública que enfrente, o problema. O SISAR- Sistema Integrado de Saneamento Rural tem conseguido alguns avanços importantes no Estado do Ceará e outros estados do Nordeste, mesclando ações públicas do governo dos estados com esforços de gestão comunitária, mas ainda há muito a avançar no atendimento da população rural no país.
A implementação do PNSR- Programa Nacional de Saneamento Rural1, que estrutura de forma clara o conjunto de ações para viabilizar o avanço no saneamento no meio rural é uma das pistas para enfrentar o problema. Porém, em todos os contextos, é necessário que os contratos para prestação dos serviços de água e esgotamento sanitário feitos com prestadoras desses serviços, quer sejam públicas ou privadas, incluam o atendimento da população que vive na área rural.
Segundo informações contidas no hub de projetos do BNDES2, somente nos estados de Alagoas (blocos A, B e C), Amapá e Rio de Janeiro (blocos 1, 2 e 3) a população total abrangida na área privatizada era de cerca de 14,4 milhões de pessoas, enquanto a população a ser atendida era de cerca de 9,5 milhões de pessoas, o que significa que mais de um terço da população ficou de fora da “universalização”.
A perspectiva de universalização precisa contemplar ainda o atendimento aos pequenos municípios e tem-se aí mais um ponto de tensionamento com relação à entrada das empresas privadas. Quando se analisa o déficit de atendimento, verifica-se que ele é muito maior nos pequenos municípios. Segundo o Censo 2022, o déficit de esgotamento sanitário é de 17% nos municípios acima de 500 mil habitantes, mas chega a 71% naqueles com até 5 mil habitantes. A gritante diferença dos déficits entre os municípios grandes e pequenos evidencia mais uma vez as contradições da hegemonia da ótica financeira nesses serviços, já que, nesta ótica, é muito mais interessante e conveniente o atendimento dos municípios maiores. O subsídio cruzado, em que o recurso adicional oriundo dos grandes municípios viabiliza algum nível de atendimento nos pequenos, ainda que em patamares insatisfatórios, tem acontecido no atual contexto em que predomina a prestação dos serviços por companhias estaduais. A privatização dos serviços, em que pese a regionalização do atendimento previsto na legislação, enfrentará problemas provavelmente maiores. O histórico do processo de privatização que ocorreu no Estado de Tocantins é didático depois de receber a concessão dos serviços em todo o estado, a concessionária privada devolveu a prestação do serviço nos pequenos municípios à responsabilidade estadual, ou seja, na prática a concessionária privada se esquivou de atender aos pequenos municípios, que eram pouco rentáveis.

O Censo de 2022 explicitou também a questão racial, entre os desafios para a universalização: “Entre os pretos e pardos, que compõem pouco mais da metade da população brasileira, o percentual de pessoas sem acesso adequado ao esgoto chega a alarmantes 69%. Enquanto isso, entre os brancos, esse número é de 29%.” Os dados ainda apontam que a falta de um abastecimento adequado de água atingia 6,2 milhões de brasileiros em 2022. Novamente, a disparidade é evidente, com os pretos e pardos representando 72% da população sem acesso adequado à água, em comparação com os brancos, que correspondem a 24%.
No olhar dos direitos humanos a universalização dos serviços de água e esgotamento sanitário se aproxima daquele em que o saneamento é visto como um investimento para melhoria da saúde pública. Esse olhar se contrapõe àquele em que os serviços se constituem uma somatória de obras de engenharia para prestação de um serviço. Na ótica dos direitos humanos é fundamental garantir a acessibilidade física e financeira, ou seja, mesmo aqueles que têm pouco recursos ou que não tem recurso precisam ter acesso à água e ao esgotamento sanitário e os gastos com estes serviços não podem impedir que outros direitos humanos, igualmente importantes sejam atendidos. Ou seja, não tem cabimento que os gastos com a água e esgotos comprometam a capacidade financeira necessária para realizar o direito humano de se alimentar adequadamente, por exemplo. A aprovação, em 2024, da Lei 14898, que regulamenta a tarifa social de água e esgotos constituiu um grande avanço para a acessibilidade financeira a esses serviços, mas é ainda grande a luta para que as diretrizes da legislação sejam efetivamente implementadas.
Entende-se que os contratos com as prestadoras de serviços precisam ter regras claras quanto ao atendimento de metas de implementação da tarifa social considerando o público-alvo previsto na Lei 14898/2024. Também é necessária a existência de procedimentos para que o serviço seja prestado nas condições excepcionais em que o usuário não tem possibilidade de pagar pelo mesmo, assegurando-se neste caso as condições de atendimento mínimo essencial, já que ninguém consegue viver sem água. E aí tem-se uma outra dimensão da universalização – se a ótica é da saúde pública, tornam-se fundamentais as metas relacionadas ao atendimento das demandas de saneamento nas esferas além do domicílio, para atender ao imenso contingente populacional que trabalha, vive ou circula em locais em que não há instalações para a higiene pessoal. Pode-se imaginar, no contexto do trabalho desprotegido e fragilizado, a massa de pessoas que trabalham nas ruas como motorista de aplicativo, vendedor ambulante, policial, zeladores de vias públicas, coletores de lixo e trabalhadores de obras públicas. Um coletivo significativo de cidadãos que demandam a oferta de banheiros e bebedouros públicos com instalações adequadas para higiene, que são raros nas cidades brasileiras. Ou ainda as milhares de pessoas a quem é negado o direito constitucional à moradia e têm como única alternativa viver nas ruas e são levadas à situação inclusive de defecação a céu aberto. Nesse caso deve-se observar a meta 6 – Água e Saneamento Básico – dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS 6) e mais especificamente a meta 6.2 “Até 2030, alcançar o acesso a saneamento e higiene adequados e equitativos para todos, e acabar com a defecação a céu aberto, com especial atenção para as necessidades das mulheres e meninas e daqueles em situação de vulnerabilidade”. Considera-se fundamental que as metas de universalização do saneamento incluam aquelas relativas à instalação de banheiros e bebedouros públicos. Embora seja predominante o reconhecimento da importância desses serviços, o consenso desaparece quando se debate quem deve pagar por eles. O artigo publicado pelo ONDAS em outubro de 2023, traz uma reflexão sobre esta questão, onde fica clara a necessidade de inclusão de metas com relação a este tópico nos contratos com os prestadores de serviços de saneamento.
As deficiências das metas atuais de universalização baseadas apenas na extensão das redes ficam evidentes quando se verifica que em alguns bairros, ou mesmo municípios, embora haja 100% de coleta de esgotos e 100% de tratamento dos esgotos coletados, tem-se praticamente todos os cursos d’água seriamente contaminados pelo lançamento irregular de esgotos sem tratamento, com impactos inequívocos na saúde pública. Isso se deve à grande quantidade de ligações cruzadas, irregulares, entre as redes de águas pluviais e de esgotos e vice-versa, parte das quais inclusive executadas pelas próprias prestadoras dos serviços de saneamento. A desconexão das ligações irregulares é cara, os responsáveis pelas duas redes (esgotos e águas pluviais) usualmente não são os mesmos e ambos buscam repassar ao outro a responsabilidade pela identificação da irregularidade e pela desconexão. É evidente a necessidade de que as metas de universalização incluam aquelas relativas ao avanço nessa desconexão, que pode eventualmente ser feita de forma indireta pelo estabelecimento de metas de melhoria da qualidade da água nos corpos receptores, que só se concretiza se acontecer a desconexão. Outro artigo publicado pelos autores deste texto, em janeiro de 2024 no site GGN, analisa os impactos das conexões irregulares na vida e na saúde dos cidadãos e os desafios de uma política voltada para resolver o problema.
Outra questão que merece destaque é do estímulo às conexões domiciliares, visando evitar a situação em que existe a rede de infraestrutura, mas não existe a conexão do domicílio à rede, quadro que não é raro em especial quando se trata do esgotamento sanitário. É preciso considerar a necessidade de programas que financiem as instalações internas para que se efetive essa ligação domiciliar. A universalização deve contemplar ainda a qualidade e continuidade do serviço pois não raro tem-se a rede de água, porém em parte significativa do tempo a rede tem baixa pressão ou simplesmente não tem água. Pesquisa realizada na Universidade Federal do ABC mostrou um quadro dramático de falta de água em favelas em que há redes de abastecimento. Um questionário efetuado na pesquisa obteve 591 respostas em 12 municípios da RMSP, sendo 93% (549) dos respondentes residentes no município de São Paulo em 2020/2021. Destas 591 respostas, 69% (ou 412) indicaram algum tipo de problema de acesso à água. Das 412 respostas que apontaram algum tipo de problema de acesso à água, foram identificados os seguintes tipos de problemas: ausência de redes de abastecimento de água e realização de ligações alternativas; em áreas providas de redes de abastecimento, há problemas decorrentes de intermitência de água na rede; dificuldade de pagar as tarifas, mesmo que seja tarifa social, o que pode levar ao corte no abastecimento; dificuldades para armazenar água porque não tem caixa d’água na residência. Os problemas de acesso à água listados acima, especificamente a intermitência na rede, leva à falta de água à noite, ou por horas e até dias. A falta d’água durante horas seguidas acontece durante o dia como indicada por 28% (165) dos moradores que responderam à pesquisa ou mais frequente, no período da noite, indicada por 33% (197) dos respondentes. Ou seja, as metas de universalização precisam contemplar aquelas relativas ao efetivo atendimento da população e com relação à qualidade/baixa intermitência do fornecimento do serviço. Vale destacar que mesmo numa cidade como São Paulo, os dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS) de 2018, mostram que havia 85.238 habitantes que não possuíam rede de abastecimento de água
Nos quadros anteriormente apresentados encontra-se um denominador comum, a prestação dos serviços de água e esgotamento sanitário é inexiste ou apresenta sérias falhas nos locais em que o serviço é caro e/ou as pessoas têm pouco dinheiro para pagar por ele. Em um cenário que cresce a concessão dos serviços para a iniciativa privada, cresce em importância a elaboração de contratos muito bem elaborados, que permitam ao poder concedente exigir que as empresas entrem também nos setores pouco lucrativos, e que a regulação dos serviços passe a atuar com rigor e determinação para exigir que isso ocorra. Em qualquer cenário de prestação dos serviços, porém, considera-se fundamental e estratégico que prevaleça a lógica de saúde pública, e da recuperação e preservação ambiental no estabelecimento das metas de universalização, que não podem definitivamente se limitar ao percentual de domicílios onde existem redes disponíveis. A universalização de redes não vai trazer a universalização efetiva. As metas previstas na legislação para 2033, com foco na ampliação das redes, camuflam vários dos principais problemas e deficiências que se verificam hoje nos serviços de água e esgotamento sanitário.
Ricardo de Sousa Moretti é Engenheiro civil, mestre e doutor pela Escola Politécnica da USP, é professor titular aposentado da Universidade Federal do ABC, colaborador do LabJuta – Laboratório de Justiça Territorial da UFABC, da Rede Brcidades e integrante do ONDAS- Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento.
Edson Aparecido Silva é Sociólogo, Mestre em Planejamento e Gestão do Território pela UFBAC, Secretário Executivo do Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento (Ondas) e Assessor de Saneamento da Federação Nacional dos Urbanitários (FNU).








