O Chile é o país onde mais radicalmente foram adotadas as práticas de privatização dos serviços públicos defendidas pela cartilha neoliberal do Consenso de Washington. As grandes manifestações públicas de descontentamento que culminaram na eleição e posse do presidente Gabriel Boric em março de 2022, após uma campanha que propunha rumos distintos ao desta cartilha neoliberal, trouxeram grande expectativa de mudanças, inclusive na Constituição do país, imposta na época da ditadura de Pinochet.
Foi eleita uma assembleia constituinte com 154 representantes populares, com composição paritária de gênero e representação dos povos originários, que trabalhou durante 2022 para elaboração de uma proposta que deveria ser aprovada por dois terços do Congresso e por um plebiscito popular. A proposta elaborada pelos constituintes foi aprovada pelo Congresso mas foi recusada no plebiscito popular realizado em setembro de 2022.
Considera-se necessário analisar as raízes do “rechaço”, como se denominou no Chile a recusa ao novo texto constitucional, que contou com apenas 38% de apoio, sendo que em plebiscito anterior, a proposta de elaboração de uma nova constituição havia contado com 80% de aprovação. Há um relativo consenso de que não há um único determinante para o “rechaço” ocorrido no Chile, que teve vários e diferentes determinantes. Neste texto serão analisados, em específico, alguns aspectos relacionados à gestão das águas no país.
Existe no Chile um modelo privado de administração das águas que é peculiar e assegura direitos de propriedade do aproveitamento das águas, a partir da emissão de DAA (documento de aproveitamento das águas), de forma gratuita e perpétua, conforme apontado em texto sobre a água na nova constituição elaborado pelo MODATIMA- Movimento de Defesa pelo Acesso à Água, à Terra e à Proteção do Meio Ambiente.
O MODATIMA inicia-se em 2010 na Província de Petorca, região de Valparaíso, a partir dos graves problemas de falta de água para os trabalhadores rurais e para a população em geral. Em alguns casos chegou-se ao secamento de rios anteriormente perenes, em razão da superexploração feita por atividades de mineração e pelo agronegócio. A água, transformada em mercadoria após concessão gratuita em larga escala aos grandes empreendimentos, precisa ser adquirida pelo poder público para que possa ser distribuída em caminhões pipa aos moradores das áreas de maior conflito hídrico.
Por ocasião do evento “O Futuro é Público”, que se realizou em Santiago no final de novembro de 2022, foi possível entrevistar Carolina Vilches, uma das dirigentes do MODATIMA e integrante do grupo de 154 representantes populares eleitos para elaboração do texto constitucional que foi submetido ao plebiscito. Carolina destacou que uma pequena alteração do quadro de gestão das águas havia sido anteriormente obtida a partir da revisão do Código das Águas, que passou a vigorar em abril de 2022 depois de 11 anos de tramitação no Congresso. Essas mudanças incluíram a eliminação da perpetuidade da concessão dos direitos de aproveitamento das águas, que passaram a vigorar para um período que varia de 20 a 30 anos, a depender do tipo de uso. Embora o Código indique a prioridade da concessão para uso humano, não indica como isto irá se concretizar. Permaneceram as titularidades anteriores de propriedade, os problemas de distribuição desigual e de superexploração da água, com graves consequências sociais e ambientais.
A proposta de revisão constitucional previa uma alteração estrutural, com a desprivatização da água que passaria a ser considerada um bem comum natural, não apropriável de forma privada. A gestão se daria através de autorizações de uso da água, em montantes definidos por Conselhos de Gestão das Bacias Hidrográficas, a partir da definição de prioridades de usos. A proposta previa ainda uma estrutura institucional, com gestão democrática e com participação das comunidades nas tomadas de decisão.
A entrevista com a representante constituinte deixa claro que o “rechaço” teve, entre seus determinantes, vários elementos semelhantes aos vivenciados no Brasil nos últimos anos. A mídia, de forma massiva e constante, trabalhou contra a aprovação, utilizando-se de uma estratégia de desinformação que chegou a ser denunciada pela BBC (https://www.bbc.com/mundo/noticias-america-latina-62245073). As ações contra, que incluíram evidentemente as redes sociais, iniciaram-se já antes da existência do texto constitucional, através de várias estratégias de desqualificação dos representantes eleitos para sua elaboração. Acusações infundadas de falta de conhecimentos e experiência técnica, de pagamentos abusivos aos representantes aconteciam sistematicamente, conforme apontado por Carolina Vilches e documentada em reportagens que não conseguiam obter espaço nos grandes meios de comunicação. A descrição do processo faz lembrar as tentativas de desqualificação da equipe de transição do governo Lula, que se verifica nas redes sociais e em parte da mídia no Brasil.
A divulgação e os esclarecimentos sobre as propostas previstas no novo texto constitucional foram barrados através de diferentes estratégias. Apesar da existência de um contingente relativamente grande de representantes populares comprometidos com as causas ecológicas (cerca de 42 representantes) a mídia abriu espaço de forma seletiva para as manifestações da bancada conservadora comprometida com os interesses dos grandes grupos econômicos. Através de uma ação judicial que se processa pela controladoria, os prefeitos e vereadores ficaram proibidos de apresentar e debater as propostas constitucionais.
Em paralelo, na medida que se produzia o texto constitucional, foi construída uma falsa narrativa, envolvendo as redes sociais e distintos meios de comunicação, de que a mudança constitucional iria liquidar o futuro. Uma estratégia secular, que faz lembrar os argumentos que eram defendidos pelos grandes fazendeiros brasileiros, para postergar a libertação dos escravos na segunda metade do século XIX. Planta-se a imagem de que os trabalhadores perderão suas casas, perderão seus empregos, que o país vai empobrecer, que será eliminada a bandeira nacional, que um estrangeiro imigrante poderá ser presidente da república.
Conforme apontado por Carolina, quando o texto constitucional ficou pronto e conseguiu a difícil aprovação de dois terços no Congresso, houve um prazo de apenas dois meses para apresentar, esclarecer e debater amplamente as propostas. O cerceamento de meios e recursos para implementar este debate de certa forma fez parte da estratégia de desinformação e construção de uma falsa narrativa.
Brasil e Chile compartilham em vários pontos um histórico de massacre aos povos originários, de super exploração de seus recursos naturais a partir da lógica da colonização e submissão aos interesses estrangeiros, manifestada de variadas formas. Agora compartilha a estratégia internacional de produção de desinformação e falsas narrativas, para que possa prevalecer o medo de mudanças que não interessam às grandes corporações.
Fonte: Ondas