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Privatização da Sabesp: há o que comemorar?

Por Amauri Pollachi*

No primeiro pilar, graças a uma incomparável pechincha, os grandes financistas ficaram muitíssimo satisfeitos já no fechamento do negócio. Mediante a venda de 15% das ações, o governo estadual transferiu o controle da empresa para um único concorrente, a Equatorial Energia, ao preço de R$ 67,00 por ação. Pelo mesmo valor, também vendeu outros 17,3% do patrimônio estadual para cerca de 3 mil fundos financeiros e indivíduos escolhidos pelo BTG Pactual dentre dezenas de milhares interessados, por meio de critérios que permanecem ocultos. No infame 24 de julho de 2024 em que o estado de São Paulo fechou a venda dos dois lotes, a cotação da ação da Sabesp era de R$ 87,00. A discrepância entre os valores de venda e de cotação resultou em um lucro imediato de quase 30% para os privilegiados compradores!

Poucos ganharam e muitos perderam. O estudo de avaliação econômico-financeira da empresa, elaborado por um consultor especializado contratado por entidades de funcionários, obteve um preço de R$ 85,58 por ação, valor muito próximo do valor real de mercado. Ao comparar esse valor com os R$ 67,00 da xepa do governo, o prejuízo para o patrimônio dos 46 milhões de paulistas foi da ordem de R$ 4,1 bilhões!

Gerar dividendos substanciais não é um desafio para a Equatorial no comando da Sabesp, uma vez que essa prática é sua especialidade. A nova gestão implementou uma drástica redução nos salários e cortou 25% do quadro de funcionários, desconsiderando o conhecimento acumulado durante décadas. A receita da Equatorial-Sabesp também parece seguir uma linha de contenção de despesas em manutenção e qualidade dos serviços. Por outro lado, ampliou em 50% o número de diretores e em seis vezes os seus salários, que agora alcançam R$ 300 mil mensais.

O segundo grande pilar do negócio da Sabesp tem a incumbência de apresentar números impressionantes, alguns deles divulgados na comemoração do primeiro ano da “nova” Sabesp[2]. Contudo, é prudente haver uma análise crítica desses dados.

Anteriormente a expansão do atendimento era mensurada em novas ligações de água e de esgoto, que, em média, giravam em torno de 190 mil e 230 mil ligações anuais, respectivamente. No pós-privatização a expansão é apresentada em novas economias de água e esgoto. No contexto do saneamento, “economia” refere-se a uma moradia, ocupada ou não, que utiliza coletivamente uma única ligação de água e/ou esgoto. Por exemplo, um edifício com 100 apartamentos possui uma ligação e 100 economias.

A Sabesp afirma que, no acumulado de 2024 e 2025, entregou 485 mil novas economias de água, atendendo a 1,3 milhão de pessoas que não tinham acesso à água. Analisemos detidamente esses números. A intensa verticalização nas grandes cidades paulistas favorece o aumento de economias, porém não amplia o contingente atendido, pois os residentes desses novos apartamentos já estariam atendidos com o abastecimento em suas moradias anteriores. Os dados do Relatório de Sustentabilidade da Sabesp[3] e do Censo do IBGE revelavam que o déficit estimado de atendimento de água nas áreas urbanas dos municípios sob contrato com a Sabesp, em dezembro de 2022, era de aproximadamente 700 mil pessoas, concentradas principalmente nas favelas e comunidades urbanas. Portanto, as bases de atendimento antes e após a privatização precisam ser abertas e apresentadas ao povo paulista, com verificação e comprovação da origem dessas novas ligações e respectivas economias divulgadas, uma vez que a disparidade entre o número de pessoas que estavam sem atendimento (700 mil) e aquelas alegadamente atendidas (1,3 milhão) é bastante significativa.

A Sabesp divulgou ter implementado 567 km de novas redes de água e 307 km de esgoto no primeiro ano de privatização, números antagônicos à necessidade premente de maior expansão da infraestrutura de esgoto para alcançar a universalização do atendimento. Entretanto, a empresa ampliou mais economias de esgoto do que de água, provavelmente devido à aplicação da Tarifa de Disponibilidade a partir de abril, prevista na Lei nº 14.026/2020 para os imóveis que possuem apenas a ligação de água e estão situados em vias públicas que já dispõem de uma rede de coleta de esgoto, desde que não sejam beneficiados por tarifas sociais. Ou seja, com um simples clique em seu sistema comercial, a Sabesp contabilizou milhares de imóveis como conectados à rede de esgoto, embora não estejam efetivamente ligados. Há aqueles que se obstinam a não conectar seu imóvel à rede coletora de esgoto, assim como há imóveis situados abaixo da rede de esgoto – muito frequentes em áreas geograficamente acidentadas – que necessitam de um sistema individual de bombeamento para conduzir seus esgotos para a rede, frequentemente de elevado custo para os proprietários. Em suma, uma parcela considerável das novas economias de esgoto pode ser, na verdade, virtual, resultante da aplicação da Tarifa de Disponibilidade, que, a custo zero para a Sabesp, duplicou a fatura mensal dos afetados sem proporcionar benefícios ambientais.

A Sabesp anunciou ter realizado R$ 10,6 bilhões em investimentos, com a expansão de 874 km de novas redes de água e esgoto. Em comparação com 2022, foram investidos R$ 5,4 bilhões e implantaram-se 799 km de redes. Comparados, esses números mostram que o aumento de investimentos foi da ordem de 96% enquanto o incremento nas redes alcançou 10%. Embora a empresa possa ter alocado mais recursos em obras de tratamento e transporte de água ou esgoto em comparação ao ano anterior, é pertinente especular se houve alterações nos critérios de imobilização de ativos, visando favorecer a elevação das tarifas em futuro próximo.

Explica-se: a privatização eliminou mecanismos de proteção ao consumidor contra aumentos abusivos nas tarifas, que anteriormente estavam sob supervisão e controle da Arsesp, a agência estadual de regulação. A lógica tarifária, que antes era revisada a cada quatro anos considerando o plano de investimento para os anos subsequentes, passou a ser anual, levando em conta o investimento realizado no ano anterior. O “mercado” considerava de alto risco o modelo anterior, pois submetia a empresa ao controle e supervisão de uma regulação proativa na validação de investimentos e na apuração de indicadores.

Para afastar esse risco indesejado pelos novos donos da Sabesp, o contrato de privatização instituiu as entidades da Empresa Avaliadora, responsável pela certificação dos investimentos, e do Verificador Independente, encarregado da aferição de indicadores e metas, ambas sob contrato da Sabesp. A Arsesp, por sua vez, limita-se a receber os relatórios dessas entidades para validação, sem dispor de uma base referencial de preços de obras e serviços que possibilite a avaliação de exequibilidade ou razoabilidade dos valores apresentados nos relatórios encomendados pela Sabesp. Em diversos estados e municípios brasileiros, a carência de parâmetros para eventuais contestações do montante dos investimentos tem sido uma das razões da submissão das agências reguladoras aos reajustes tarifários conforme a conveniência da empresa privada de saneamento.

É vital para a defesa do bolso dos paulistas que sejam verificadas e divulgadas publicamente, com ampla participação da sociedade, possíveis alterações nos critérios de imobilização de ativos e de etapas de empreendimentos, bem como nos procedimentos de classificação contábil de investimentos e de despesas com serviços, práticas que impactariam sobremaneira a próxima revisão tarifária. A comparação entre os atuais valores das despesas com serviços e os de períodos anteriores possibilita evidenciar tais alterações indesejáveis de procedimentos.

A gênese do projeto de privatização da Sabesp, os números aqui analisados, bem como as sucessivas ocorrências de deterioração na qualidade dos serviços, degradações ambientais, falhas operacionais e exclusão de benefícios neste primeiro ano, evidenciam que o saneamento paulista é conduzido de forma autoritária e focado na maximização do lucro em um serviço essencial, tanto para a realização dos direitos humanos quanto para o enfrentamento à crise climática.

Diferentemente do que afirma seu atual CEO, sem qualquer sombra de dúvida a Sabesp é responsável pela implementação da política pública de saneamento em todos os municípios que a contrataram. Deve garantir o acesso integral à água boa e ao saneamento digno para mais de 30 milhões de pessoas, atender a todos os estratos sociais e econômicos com respeito, atuar de forma transparente e cessar a prática de lançar esgotos nos rios e reservatórios.

*Amauri Pollachi – Mestre em Planejamento e Gestão do Território pela UFABC e graduado em Engenharia e História pela USP. Está Coordenador Administrativo e Financeiro do Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento (ONDAS), pesquisador na UFABC e vice-presidente do Comitê da Bacia Hidrográfica do Alto Tietê diretor da. Especialista em Saneamento e Recursos Hídricos, exerceu diversos cargos na Sabesp e na Secretaria de Saneamento e Recursos Hídricos de São Paulo. Foi presidente da Associação dos Profissionais Universitários da Sabesp.