Foi aprovado na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal, no último dia 6 de julho, a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) n° 2, de 2016, de autoria do Senador Randolfe Rodrigues (REDE AP), contando com o apoio de todos os(as) senadores(as), que insere o saneamento básico no rol de direitos sociais tutelados pelo art. 6° da Constituição Federal. Essa iniciativa reforça e complementa a PEC n° 06/2021, aprovada no Senado e atualmente em tramitação na Câmara dos Deputados, que modifica o art. 5° da Constituição Federal para garantir a todos o acesso à água potável em quantidade adequada para possibilitar meios de vida, bem-estar e desenvolvimento socioeconômico.
Essas iniciativas buscam corrigir uma grave omissão do legislador constituinte, que não poupou esforços para proteger os direitos à vida, à saúde e ao meio ambiente, mas não se pronunciou sobre os direitos à água e ao saneamento, que são pressupostos à realização desses direitos tão prestigiados pela Constituição Cidadã. Esses esforços também consolidam os compromissos reiteradamente assumidos pelo Brasil em suas relações internacionais e vastamente consolidados pela comunidade internacional. Não apenas louváveis, portanto, ambas as iniciativas, mas também extremamente necessárias na atual conjuntura, em que, o agravamento da fome que afeta 33 milhões de brasileiros e brasileiras não se dissocia da violação dos direitos humanos à água e ao esgotamento sanitário.
Entretanto, para os céticos que alegam que essas prerrogativas constitucionais básicas, verdadeiras condicionantes da dignidade da pessoa humana, poderiam representar empecilhos para a universalização do saneamento básico no Brasil, faz-se necessário esclarecer melhor a matéria por meio do pequeno excerto a seguir.
Ainda que não tenha previsão expressa no texto constitucional, a doutrina brasileira apresenta diversos fundamentos para o reconhecimento do direito à água e ao esgotamento sanitário. A teoria autônoma defende que esse direito estaria implícito no texto constitucional, em razão da água ser um elemento essencial para a vida humana.[1] Nesse sentido, essa teoria defende que, apesar da ausência de reconhecimento formal desse direito, seus aspectos materiais, como sua indispensabilidade para a sobrevivência humana, são suficientes para sua categorização enquanto direito fundamental. Essa teoria se aproxima do desenvolvimento de um direito ao mínimo existencial, que “alcança a manutenção e a prestação de meios necessários a uma existência digna”. [2] O próprio Superior Tribunal de Justiça já reconheceu esse direito de forma autônoma: “A água é o ponto de partida, é a essência de toda vida, sendo, portanto, um direito humano básico, o qual deve receber especial atenção por parte daqueles que possuem o mister de fornecê-la à população.”[3]
Por sua vez, na via derivada, um entendimento possível seria que o direito à água e ao esgotamento sanitário deriva diretamente do direito à vida (art. 5, caput) e do direito à saúde (art. 6) da Constituição da República.[4] Ainda, verifica-se que vertentes similares argumentam que o direito à água e ao esgotamento sanitário deriva do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, previsto no art. 225 da Constituição da República.[5]
Finalmente, há também o entendimento de que o direito á água e ao esgotamento sanitário não é direito fundamental, mas trata-se de política pública indispensável à concretização de direitos fundamentais, como o direito à saúde e o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.[6]
Não bastasse, os direitos à água e ao saneamento também estão presentes, em razão de sua imprescindibilidade à realização de outros direitos, em tratados e convenções ratificadas pelo Brasil. Esses instrumentos gozam de tratamento especial no nosso ordenamento jurídico, configurando-se enquanto normas supralegais. Os casos mais notórios são o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC) e a Convenção Americana de Direitos Humanos.
No primeiro caso, o Comitê sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da Organização das Nações Unidas (ONU) adotou o Comentário Geral n° 15, intitulado “O Direito à Água”, que esclarece que o direito à água se insere no conjunto de garantias essenciais para assegurar um padrão de vida adequado, codificado no art. 11 do PIDESC, sendo indispensável para a sobrevivência.
Já no caso da Convenção Americana de Direitos Humanos, a Corte Interamericana de Direitos Humanos já possui jurisprudência consolidada acerca da existência do direito à água, inclusive de forma autônoma.[7]
Ainda, os direitos à água e ao esgotamento sanitário foram inequivocamente reconhecidos e prestigiados pela Assembleia Geral da ONU por meio da Resolução n° 64/292 (2010), apoiada pelo Brasil, posteriormente reafirmada e respaldada por diversas resoluções da própria Assembleia Geral, do Conselho de Direitos Humanos da ONU, bem como de outras entidades e fóruns multilaterais.[8]
O ONDAS apoia ambas as propostas de emenda constitucional e conclama as entidades que trabalham por direitos para se mobilizarem para que o Congresso Nacional as aprove com a celeridade necessária para aplacar o sofrimento de milhões de brasileiros e brasileiras que sofrem de fome e de sede.
Seguimos reafirmando: Água é Direito e não Mercadoria!
Coordenação Geral do ONDAS
8 de julho de 2022
[1] MAIA, Ivan. O Acesso à Água Potável como Direito Humano Fundamental no Direito Brasileiro. Revista do CEPEJ, vol. 20, p 301-338, 2017. p. 330.
[2] BITENCOURT NETO, Eurico. O Direito ao Mínimo para uma Existência Digna. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010. p. 120.
[3] PROCESSUAL CIVIL. CONSUMIDOR. DISSÍDIO JURISPRUDENCIAL NÃO DEMONSTRADO. FORNECIMENTO DE ÁGUA. SERVIÇO ESSENCIAL. DIREITO HUMANO À ÁGUA. DEMORA EXCESSIVA NO REABASTECIMENTO. EXCESSO DE PRAZO SEM PRESTAÇÃO DE ASSISTÊNCIA AO CONSUMIDOR. FALHA NA PRESTAÇÃO DO SERVIÇO. PRESCRIÇÃO. 5 ANOS. ART. 27 DO CDC. (…) 8. É inadmissível acatar a tese oferecida pela insurgente. A água é o ponto de partida, é a essência de toda vida, sendo, portanto, um direito humano básico, o qual deve receber especial atenção por parte daqueles que possuem o mister de fornecê-la à população. (…) (REsp 1629505/SE, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 13/12/2016, DJe 19/12/2016).
[4] BRZEZINSKI, Maria Lúcia. O Direito à Água no Direito Internacional e no Direito Brasileiro. Confluências, vol. 14, n. 1, p. 60-82, 2012. p. 72.
[5] SANTIAGO, Nestor; VIEIRA, Patrícia. O Direito à Água e ao Saneamento Básico: Interlocuções com o Garantismo de Ferrajoli. Veredas do Direito, vol.18, n.40, p.385-409, 2021. p. 389-390.
[6] RIBEIRO, Wladimir. O saneamento básico como um direito social. R. de Dir. Público da Economia – RDPE, ano 13, n. 52, p. 229-251, 2015. p. 238.
[7] Case of the Indigenous Communities of the Lhaka Honhat (Our Land) Association v. Argentina, Judgment of February 6, 2020 (Merits, reparations and costs). Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_400_ing.pdf. Acesso em: 16/01/2022. p. 3-4.
[8] A título de exemplificação: GA res. 76/153 (2021), HRC res. 45/8 (2020), GA res. 74/128 (2020), HRC res. 42/5 (2019), HRC res. 39/8 (2018), GA res. 72/128 (2018), HRC res. 33/10 (2016), GA res. 70/169 (2016), HRC res. 27/7 (2014), GA res. 68/157 (2014), HRC res. 24/18 (2013), HRC res. 21/2 (2012), HRC res. 18/1 (2011), HRC res. 16/2 (2011).