Tese-3- Situação do sindicalismo
Novas demandas e novos desafios
1- Com a explosão dos protestos de rua em junho, alguns estudiosos e jornalistas – vários deles inimigos declarados da luta organizada dos trabalhadores – decretaram o fim do sindicalismo. Argumentaram que a revolta foi protagonizada por jovens sem qualquer vínculo orgânico com os movimentos sociais tradicionais. A mídia patronal explorou ao máximo as cenas de vandalismo em que bandos de provocadores – inclusive policiais infiltrados – rasgaram as bandeiras dos partidos de esquerda e das centrais sindicais e agrediram militantes populares. Numa manobra descarada, a direita midiática e partidária tentou pegar carona nas gigantescas manifestações de rua que agitaram o país para impor a sua pauta conservadora. A negação da política – e da ação coletiva, expressa historicamente pela organização classista – é uma das formas que as elites utilizam para destruir as liberdades democráticas e para derrotar a luta dos trabalhadores. Foi esta a tática seguida por Adolf Hitler e Benito Mussolini para impor a devastação nazifascista na Europa. Foi este também o discurso usado pelas elites para justificar o golpe militar de 1964. O objetivo era derrotar a “república sindicalista” de João Goulart, presidente democraticamente eleito, para impor a brutal ditadura do capital que arrochou salários, retirou direitos trabalhistas, interveio em sindicatos e prendeu, torturou e assassinou inúmeros sindicalistas. Há muito que o patronato tenta destruir o sindicalismo – inclusive demonizando sua imagem – para poder explorar ainda mais os trabalhadores. Esta é a lógica do capitalismo. A jornada de junho apenas confirmou esta velha tática patronal, que muitos serviçais difundem descaradamente na mídia “privada”.
2- Para entender a postura do movimento sindical diante da onda de protestos no país é preciso conhecer a sua história. Ela desmente a falácia do “gigante despertou”, que tenta negar a luta secular e heroica dos trabalhadores. Grosso modo, esta história teve quatro fases no período recente. A primeira relembra o período sombrio da ditadura; a segunda mostra a ascensão do sindicalismo nos anos 1980; a terceira aborda a fase regressiva e destrutiva do neoliberalismo; e a quarta abrange a complexa ação sindical no governo Lula, o primeiro oriundo das lutas operárias. Cada fase tem as suas contradições, com avanços e recuos, acertos e erros. No período do regime militar, instalado com o golpe de 1964 e radicalizado a partir de 1968, o sindicalismo comeu o pão que o diabo amassou. Apenas nos primeiros meses do golpe, 814 sindicatos sofreram intervenção da ditadura, com a imposição de juntas governativas ligadas aos patrões. Milhares de líderes sindicais foram presos e cassados; muitos deles foram torturados e assassinados nos porões das torturas; alguns ainda figuram nos registros como “desaparecidos”. Para impor a lei do arrocho salarial – que proibia reajustes acima da inflação – e o fim da estabilidade no emprego, os generais baixaram um decreto proibindo terminantemente as greves e os sindicatos passaram a ser vigiados por agentes da Polícia Federal. Para disputar as eleições nos sindicatos, os ativistas precisavam apresentar “atestado de bom antecedente”, fornecido pela ditadura. As finanças das entidades eram rigorosamente controladas pelos agentes do Ministério do Trabalho, que proibiam o uso dos recursos na promoção de lutas e na formação sindical. Durante quase uma década, os sindicatos viraram cemitérios, sem assembleias, reuniões ou atividades de luta por direitos. Eles foram transformados em repartições públicas, em entidades meramente assistenciais e médicas. A ação sindical neste período representava um ato de heroísmo e coragem e os mártires deste período merecem todo respeito e admiração. Em setembro passado, a Comissão da Verdade, criada pelo governo Dilma Rousseff, reconheceu os brutais crimes da ditadura perpetrados contra centenas de lideranças classistas.
3- A feroz ditadura, porém, não conseguiu conter a luta dos trabalhadores. Por fora dos sindicatos, várias ações foram organizadas pelo fim do regime militar – através das comunidades eclesiais de base da Igreja, do movimento contra a carestia ou da campanha pela anistia dos presos políticos. Mesmo por dentro das entidades sob a tutela dos militares, muitas lideranças se reciclaram – a exemplo do operário Luiz Inácio Lula da Silva. Aos poucos, o sindicalismo nativo foi se reerguendo. Em maio de 1978, a greve dos metalúrgicos da Scania, em São Bernardo do Campo, pegou de surpresa a ditadura, os empresários, a mídia e o próprio sindicato. Desgastados pela explosão da inflação e pelo crescimento da luta pela democracia, os generais não tiveram como reprimir os grevistas do ABC paulista. A histórica paralisação abriu as comportas da revolta operária. Em pouco tempo, o sindicalismo brasileiro virou símbolo de combatividade no mundo, ganhando prestígio internacional. O Brasil passou a bater recordes seguidos do número de greves – de 1979 até 1984. Em 1981, apesar da proibição dos generais, mais de 5 mil ativistas sindicais se reuniram na Praia Grande, no litoral paulista, na 1ª Conferência Nacional das Classes Trabalhadoras (Conclat). As pesquisas de opinião passaram a apontar os sindicatos como a segunda instituição mais respeitada pelo povo brasileiro. Várias lideranças perceberam que a luta econômica era insuficiente – combatia os efeitos, não as causas da exploração capitalista – e passaram a dar maior atenção à luta política, por mudanças nas leis e pela conquista de espaços de poder. Lula se projetou exatamente neste período de ouro, tornando-se a principal referência das batalhas sindicais. Esta vigorosa ascensão da luta dos trabalhadores, porém, não conseguiu conter o tsunami neoliberal e a reestruturação produtiva do capital, que já causavam estragos no mundo inteiro. Com a vitória de Fernando Collor de Mello nas eleições de 1989, o Brasil ingressou na órbita da globalização neoliberal, com o seu receituário destrutivo e regressivo.
4- O falso “caçador de marajás” até foi deposto pelo gigantesco movimento da juventude nas ruas pelo impeachment. Em seu lugar, porém, as elites conseguiram emplacar outro Fernando. A partir de FHC, o país passa a ser um importante laboratório mundial do famigerado neoliberalismo, com seu projeto de desmonte do trabalho, da nação e do Estado. Quem não se lembra da histórica greve dos petroleiros, em 1995, um movimento que se tornou símbolo da resistência dos trabalhadores ao ataque neoliberal de FHC e foi fundamental para impedir a privatização da Petrobras. Os três pilares básicos do direito ao trabalho (contratação, remuneração e jornada) foram destruídos no seu triste reinado. Foram impostos os contratos precários e temporários de trabalho, a jornada flexível (com o banco de horas) e a remuneração variável (através da Participação nos Lucros e Resultados). Além dos graves retrocessos nos direitos trabalhistas, a política macroeconômica recessiva dos tucanos – com juros estratosféricos, arrocho fiscal e libertinagem cambial – também resultou na explosão do desemprego e no brutal arrocho dos salários. Ao mesmo tempo, as empresas promoveram uma ostensiva reestruturação produtiva, com a introdução de novos maquinários (automação microeletrônica) e de novas técnicas de gerenciamento, o que também causou recordes de demissões. Todas estas mudanças tiveram profundo impacto nas lutas dos trabalhadores. O sindicalismo ingressou numa fase de defensiva prolongada e crônica. As assembleias se esvaziaram, as greves minguaram e os índices de sindicalização despencaram. Para agravar ainda mais este cenário, o movimento sindical se dividiu, com a formação de várias centrais. Até ocorreram ações de resistência, principalmente contra a privatização das estatais e a extinção da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), mas elas foram insuficientes para conter a avalanche neoliberal. Se a ditadura militar prendeu, torturou e matou, o neoliberalismo implantado por FHC devastou o mundo do trabalho e acuou o sindicalismo. Esta devastação cobra seu alto preço até hoje!
5- A quarta fase desta rica história recente tem início com a vitória de Lula nas eleições de outubro de 2002. Oriundo das lutas sindicais, o novo presidente inaugura um novo ciclo político no país. Aos trancos e barrancos, com erros e acertos, avanços e recuos, o novo governo passa a enfrentar alguns dogmas do neoliberalismo. Na política externa, o Brasil adota uma ação mais afirmativa e altiva. Supera o “alinhamento automático” com os EUA imposto pelo servil FHC; inviabiliza o tratado neocolonial da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA); anula a entrega da base militar de Alcântara (MA) para os ianques; aposta nas relações diplomáticas e comerciais com as nações emergentes dos Brics; e impulsiona a integração latino-americana. Na relação com os movimentos sociais, o governo Lula adota um comportamento mais democrático, de diálogo, diferente da postura autoritária de FHC que acionava as tropas do Exército contra as greves. No terreno econômico, até hoje ainda não foi superado o tripé neoliberal dos juros elevados, arrocho fiscal e libertinagem financeira. Mesmo assim, as duas gestões de Lula adotaram políticas de estímulo ao mercado interno de consumo e investiram em políticas sociais mais inclusivas. Estas ações governamentais, mesmo que limitadas e tímidas, resultaram na geração de empregos e no aumento de renda dos assalariados. O tecido social que havia sido esgarçado no reinado dos tucanos volta, aos poucos, a ser reconstituído, o que permite que a luta dos trabalhadores saia da defensiva. Neste processo contraditório e complexo, o sindicalismo tem ocupado um papel relevante. Através da pressão e da negociação, ele foi decisivo para a conquista da política de valorização do salário mínimo, medida adotada pelo governo Lula que impulsiona a geração de empregos. Aproveitando-se das brechas democráticas, o sindicalismo também conquistou o reconhecimento legal das centrais – fato inédito na nossa longa história republicana. Esta nova fase ainda não supera os estragos causados pelo neoliberalismo e pela reestrutura produtiva do capital, mas abre novas perspectivas para as lutas populares. O sindicalismo ainda tateia para descobrir os melhores caminhos. Diante da nova realidade política, marcada por um governo oriundo das suas lutas, ele tendeu para os extremos em certos momentos. Alguns setores adotaram uma postura passiva, acrítica, sob a justificativa de que era preciso defender o governo diante dos ataques da oposição de direita. Outros partiram para posições voluntaristas, radicalizando discursos e ações contra o governo Lula. Aos poucos, o sindicalismo vai aplicando uma política mais calibrada e equilibrada, baseada em três princípios: preservação da sua sagrada autonomia sindical; aposta na pressão permanente; e exercício da inteligência política para evitar retrocessos e garantir avanços.
6- Na fase atual, o sindicalismo ainda procura jogar um papel mais protagonista na mobilização, conscientização e organização dos trabalhadores. A vitória de Dilma Rousseff em outubro de 2010 não alterou substancialmente a correlação de forças no país. A presidenta dá continuidade, com alguns ajustes, ao ciclo político inaugurado por Lula. As forças neoliberais perderam influência no terreno partidário-eleitoral, com a desintegração do DEM e a crise do PSDB, mas ainda têm poderosos instrumentos de pressão na sociedade – principalmente através do capital financeiro e da mídia privada, hoje o principal partido da direita nativa. Os avanços políticos e sociais conquistados nos últimos dez anos foram significativos, mas insuficientes. Os protestos de rua deflagrados a partir de junho evidenciam que a sociedade quer mais – ela deseja mudanças estruturais no país. As manifestações juvenis exigiram mais saúde, educação, mobilidade urbana e mais democracia, contra o poder corruptor dos ricos. Os setores de direita, inclusive de cunho fascista, tentaram capturar os protestos de rua e manipular a sua pauta. Não conseguiram total êxito, mas não desistiram do seu projeto. Já o sindicalismo não fugiu das ruas e também tentou emplacar suas justas demandas. Dois protestos unitários foram organizados pelas centrais sindicais na luta pela pauta trabalhista – redução da jornada de trabalho sem perda salarial, fim do fator previdenciário, contra o projeto que amplia a nefasta terceirização, entre outros itens. Já em setembro, importantes greves foram deflagradas – como a paralisação nacional dos bancários e a mobilização dos petroleiros contra os leilões do pré-sal. Os rumos do Brasil estão em disputa – o que deverá se acirrar ainda mais em 2014, ano de novas eleições presidenciais. Neste contexto, o sindicalismo tem importante e papel a desempenhar. As ruas demonstraram que é urgente avançar nas mudanças – superando os entraves neoliberais e viabilizando as reformas estruturais. Ao mesmo tempo, é preciso evitar qualquer risco de retrocesso político. No terreno propriamente trabalhista, os perigos também são grandes. Sob o argumento da crise capitalista mundial, as entidades patronais persistem na defesa de medidas contrárias aos anseios dos trabalhadores. Vários projetos de lei em debate no Congresso Nacional visam retirar direitos trabalhistas, como o que amplia a terceirização.
7- Neste processo de retomada da sua organização e da capacidade de mobilização, após a avalanche do neoliberalismo, o movimento sindical tem inúmeros desafios pela frente. Entre outros, ele precisa intensificar e aperfeiçoar a sua relação com a juventude, que possui novas demandas, anseios e linguagens. O mundo do trabalho passa por intensas alterações. Os jovens ocupam cada vez mais espaços nas empresas. Eles desconhecem a história das conquistas trabalhistas, não possuem cultura sindical e muitos são formados numa visão individualista, tecnicista. A forma de se comunicar com a juventude exige mudanças de comportamento, mais criatividade e audácia na atuação sindical. Outros dois grandes desafios da atualidade são os da formação e da comunicação. O processo de renovação das lideranças é muito lento no Brasil, o que decorre, entre outros fatores, dos retrocessos dos tempos neoliberais. É urgente investir na formação para reciclar os dirigentes com certa experiência e para formar novos líderes. Para avançar nas lutas é necessário aumentar o time de lutadores organizados e formados. A luta de ideias na sociedade hoje é bem mais complexa e difícil. As empresas adotam técnicas de gerenciamento que visam cooptar os trabalhadores, estimular a concorrência no seio da própria classe e afastá-los dos sindicatos. Já a mídia privada estimula o individualismo e consumismo, que também dificulta a ação organizada dos trabalhadores. Além de priorizar a formação, os sindicatos necessitam priorizar a comunicação, investindo mais no setor, apropriando-se das novas ferramentas (como a internet) e aprimorando sua linguagem. Sem formação e comunicação dificilmente o sindicalismo conseguirá superar as dificuldades atuais para mobilizar, conscientizar e organizar a classe trabalhadora. Por último, entre os desafios da atualidade, cabe destacar a importância da unidade. O Brasil possui mais de 13 mil sindicatos e nove centrais sindicais – cinco delas legalizadas. As batalhas de cada categoria por seus direitos cumprem importante papel, mas são insuficientes para promover mudanças mais profundas no país e para garantir maiores conquistas para o conjunto da classe. É urgente superar a fragmentação e a pulverização das nossas lutas. É preciso, ainda, superar as divisões no nosso campo. Só a unidade de classe dos trabalhadores, respeitando sua pluralidade e diversidade, é que garantirá os avanços necessários no enfrentamento da barbárie capitalista e na construção dos caminhos para a emancipação, para o socialismo!