No cotidiano de milhões de trabalhadores em todo o mundo falta água em quantidade e qualidade suficientes, assim como banheiros adequados. Esses serviços são direitos essenciais independentemente do tipo de trabalho ou local de atuação do trabalhador. Essa escassez se relaciona, sobretudo, à precariedade das condições de trabalho nas periferias do mundo da produção, em trabalhos em condições degradantes ou análogas à escravidão. No entanto, também afeta todos os trabalhadores cujo local de trabalho é a rua, como os tradicionais comerciantes de rua, tais como camelôs e ambulantes, além de motoristas e entregadores de plataformas inseridos no fenômeno recente conhecido como “uberização” do trabalho.
A água e o saneamento são direitos humanos reconhecidos pela Organização das Nações Unidas desde 2010 e devem ser garantidos em várias esferas da vida, incluindo os locais de trabalho. Ter acesso à água e instalações sanitárias durante a jornada de trabalho é essencial para o bem-estar, qualidade de vida, dignidade, conforto, produtividade, saúde e segurança no trabalho. A água para consumo no trabalho, conforme a Organização Internacional do Trabalho (OIT), deve ser proveniente de uma fonte segura, estar sempre acessível e não deve ser consumida em copos ou recipientes compartilhados. Deve ser suficiente para garantir as condições de higiene pessoal e alimentar do trabalhador, com ênfase na necessidade da água para higiene menstrual. As instalações sanitárias devem garantir privacidade, dignidade, conforto e higiene.
O direito fundamental à água, no contexto do trabalho, está previsto em diversas normas nacionais e internacionais, como: convenções de Direitos Humanos; normas internacionais da OIT – por exemplo, a Convenção sobre a Água Potável, 1919 (Convenção nº 13), que estabelece diretrizes sobre o acesso à água no local de trabalho, na Constituição e normas infraconstitucionais do país. No Brasil, a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), que estabelece diversas normas relacionadas às condições de trabalho, inclui disposições sobre o direito à água no local de trabalho (art. 200, VII) e determina que o órgão de âmbito nacional competente em matéria de segurança e medicina do trabalho estabeleça regulamentações sobre a aplicação dos referidos preceitos da CLT (art. 155, I). Isso foi feito por meio da Norma Regulamentadora 24 (NR-24), que trata das condições de higiene e conforto nos locais de trabalho, incluindo aspectos relacionados às instalações sanitárias e ao fornecimento de água potável aos trabalhadores. Assim como outras NRs também trazem especificidades a depender do local de trabalho, por exemplo, a NR-18 para trabalho na indústria da construção civil; NR-31 para trabalho em áreas rurais e NR-32 para trabalho em serviços de saúde, entre outras.
Além das referências já mencionadas, é relevante destacar o papel crucial de acordos e marcos globais, como a Agenda 2030 das Nações Unidas (ONU) e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). Em particular, o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 6 (ODS 6), que estabelece uma meta global para garantir a disponibilidade e gestão sustentável da água e saneamento, inclusive no ambiente de trabalho, até 2030. Esses compromissos internacionais não apenas ressaltam a importância do acesso à água e saneamento, mas também instam os países a adotar medidas para promover o trabalho decente, assegurando que a água e o saneamento sejam componentes essenciais dessa equação. Portanto, a legislação nacional deve ser interpretada à luz desses compromissos globais, enfatizando a necessidade de regulamentações abrangentes para garantir que os direitos à água e saneamento sejam respeitados em todos os locais de trabalho em escala global.
No entanto, devido às diversas formas que o trabalho humano assume na atualidade, a legislação nacional tem se mostrado insuficiente para garantir a efetividade de tais direitos, sobretudo para aquelas configurações de trabalho nas quais o tomador dos serviços é impreciso, oculto ou dividido em sistemas hierárquicos de empregadores. O mesmo ocorre com os trabalhadores que desempenham serviços externos ou em campo.
Vale ressaltar que a Constituição Federal de 1988 estendeu o direito à redução dos riscos no trabalho por meio de normas que se aplicam a todos os trabalhadores, independentemente da forma da forma de vínculo com o tomador dos serviços, ou mesmo na ausência desse vínculo, conforme estipulado no inciso XXII do artigo 7º.
“Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:
XXII — redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança;”
Em relação aos trabalhadores que exercem suas atividades prioritariamente em espaços públicos, as ferramentas estabelecidas na NR- 24 para alcançar os direitos não têm se mostrado eficientes. Ademais, o crescimento do trabalho por aplicativo, como o de motoristas e entregadores, apresenta desafios consideráveis no que diz respeito ao acesso à água e saneamento no ambiente laboral. Dada a natureza frequentemente móvel dessas ocupações, providenciar instalações sanitárias adequadas e acesso à água potável pode ser uma tarefa complexa. Portanto, é fundamental que a regulamentação trabalhista se adapte a essas novas dinâmicas, garantindo que esses trabalhadores também tenham acesso assegurado a condições laborais seguras e à infraestrutura de água e saneamento, independentemente do modelo de emprego. Sendo assim, é imperativo que as políticas e regulamentações reconheçam a singularidade desse tipo de trabalho e se ajustem para proteger efetivamente os direitos dos trabalhadores.
Mesmo para os trabalhadores considerados formais, ainda há muito o que se avançar. Não são raras as notícias de cobrança pelo consumo de água ou de ausência do seu fornecimento, o que obriga o trabalhador a levar água de casa para atender às suas necessidades; ou a situação de trabalhadores que têm tempo controlado para usar o banheiro, tem à sua disponibilidade apenas instalações sanitárias precárias ou mesmo não possuem acesso a elas.*
Dessa forma, percebe-se a íntima relação entre o direito à água e ao saneamento e o direito ao trabalho decente, uma vez que para que esse último seja garantido, os dois primeiros devem ser assegurados. Tanto o Estado quanto os empregadores têm responsabilidade nesse cenário. O relatório mais recente sobre o assunto, publicado pela OIT em 2016, com revisão em 2020, estabelece diretrizes para as partes. Destaca-se nesse texto as principais ações que os empregadores devem assumir: desenvolver um plano de provisão segura de água potável; testar com periodicidade a qualidade da água fornecida; garantir que quando não seja possível o fornecimento de água corrente, água em vasilhames desinfetados seja transportada até as frentes de trabalho; conduzir uma avaliação de riscos para compreender as demandas de uso da água e banheiros dos diferentes grupos de trabalhadores; considerar as necessidades de trabalhadores com necessidades específicas, como portadores de deficiências, grávidas, idosos e pessoas com condições de saúde; proteger o reservatório de água potável contra possíveis fontes de contaminação; proibir o compartilhamento de copos e garrafas; garantir privacidade e pausas frequentes para uso do banheiro; entre outros.
No caso de trabalhadores que exercem suas atividades nas ruas, as ações do poder público desempenham um papel essencial, incluindo: Instalação de banheiros e bebedouros públicos em áreas de grande circulação; colocação de estações de água potável em locais estratégicos; promoção de parcerias com estabelecimentos para que ofereçam acesso gratuito à água; garantir acesso à instalações sanitárias públicas, limpas e de fácil acesso a todos; realização de campanhas sobre a importância da hidratação para a manutenção da saúde. Essas ações envolvem custos econômicos e precisam de fonte de financiamento, além de articulação com regulamentações municipais, já que esses são os locais onde as atividades são, de fato, desenvolvidas. Essas medidas devem ser incorporadas às políticas nacionais de saúde e incluídas nos Códigos de Postura Municipais, com orçamento garantido para a sua efetivação. As soluções concretas podem ser diversas, desde a locação, a construção de dispositivos urbanos ou outras estratégias e parcerias que garantam o fornecimento e a continuidade desses serviços fundamentais.
Contribuíram com o texto: Graça Maria Borges de Freitas, Geyse A.C. Santos, Paula Rafaela S. Fonseca, Ricardo de Sousa Moretti, Washington Lima dos Santos
Fonte: Outras Palavras