Sentimos imensamente a perda de uma das mentes mais pensantes da América Latina. A memória do escritor Eduardo Galeano ficará em nossos corações e mentes por muito tempo, seguiremos perseguindo seus sonhos e lutando para que eles se realizem.
Veja abaixo a matéria concedia especialmente para Francielly Baliana e Diego Torres, de Montevidéu (Uruguai), para o Brasil de Fato em 07/07/2014:
Um gole de Galeano
O autor do consagrado livro “As veias abertas da América Latina” conversou com a reportagem do Brasil de Fato. Em pauta, futebol, governo Dilma e memórias da ditadura. Confira:
Montevidéu tem seus próprios ventos, que se parecem, em muito, com crônicas de cidade pequena. Além de estreita, antiga. Onde prédios velhos se tocam no alto do céu e olhos se cumprimentam nas praças regadas de folhas. Cafés que falam muitas línguas recebem durante o dia linguagens de todas as partes. São gestos de histórias vizinhas contracenando com sentimentos interioranos que a capital uruguaia abriga em si. Não deixam de captar os olhares, as vozes, as vidas.
Uma das ruas mais antigas de Montevidéu é também a que abriga o Café Brasileiro, um dos espaços mais charmosos de Ciudad Vieja, com arquitetura típica do século 19. Ali, onde o vento do lado de fora parecia fazer a curva para o continente, foi que esperamos pelo encontro com Eduardo Galeano, um dos maiores escritores de nossa América Latina.
Enquanto contávamos os minutos para sua chegada, as fotografias nas paredes revelavam a proximidade que o autor tinha com o local. Eram inúmeras fotos suas. Não seria, então, coincidência estarmos ali, em um lugar escolhido por ele, naquela manhã de sábado. Devia ser seu mais aconchegante quintal, no qual nos acomodamos logo, sem saber se pelo apreço visual da madeira fria que estruturava o local, ou pelo cheiro de um café tão tipicamente próximo ao nosso. As duas coisas, talvez.
Galeano chegou acompanhado de sua filha Florência, e entrou sorrateiro, sem que escutássemos o barulho de seus passos. Quando nos demos por encontrados, tomou-nos as mãos e cumprimentou-nos carinhosamente.
“Veja se isso aqui não parece um romance policial”, atestou. “Quando olhei vocês dois aqui sentados, disse logo à Florência: são eles!”, sorriu com um humor de quem se sente em casa. Não demoramos a deixar nossos olhares curiosos de tudo focarem em seus olhos azuis, capazes de iluminar todo o ambiente.
Antes mesmo de o café chegar, contamos a ele o motivo que nos levara ali – uma tenra admiração junto à vontade de estabelecer conversa com vozes e olhares. O que falaríamos a um jornalista que já havia concedido inúmeras entrevistas a tantos veículos? Que a conversa fluísse, pois. Que pudéssemos assentar em um sábado de sua vida e compreender o que as histórias e a despretensão de estar ali, junto a ele, nos trouxessem às mãos.
O primeiro gole de cappuccino veio quando comentamos sobre as propagandas políticas que vimos a caminho do encontro, e sobre as eleições presidenciais que também acontecerão esse ano no Uruguai. Galeano não demorou a enfatizar suas percepções sobre o assunto, apontando, com os dedos pouco acima da mesa, para as ruas que cercavam o Café.
“Eu não entendo a política uruguaia”, afirmou. “A divisão partidária me confunde. Aqui, dentro de um partido que se assume como ‘esquerda’, existem frentes conservadoras e outras de extrema esquerda que disputam entre si. Então, antes do embate eleitoral, existe uma discussão de quem é que lidera o partido. Nunca vou entender isso”,completou, afirmando ainda a dificuldade que há em se estabelecer uma linha de governo dessa forma.
Governo Dilma
Comentamos o quanto também é dificultoso no Brasil estabelecer identidade com um dos mais de 30 partidos existentes. “Eles deixam complexo o que é extremamente simples”, retomou, interpedisselando a si mesmo com a cabeça, colocando mais um gole do seu cappuccino sem açúcar na garganta. Sobre o governo de Dilma Roussef, afirmou que é um bom governo, de forma geral.
“Teve muitos erros e acertos, mas uma coisa é fato: o governo Dilma é claramente uma continuidade do governo Lula, o que não é ruim. Continua com boas políticas sociais e de base, no entanto, por conta do perfil de política do PT, que vem mudando nas últimas décadas, Dilma se preocupou demasiadamente com o modo de fazer política através das muitas alianças, e isso pode ter atrasado medidas importantes à população”, destacou.
Quando se tratou de política, o autor de As Veias Abertas da América Latina não ousou deixar de lado o peso histórico das ditaduras militares que se espalharam pelo continente no século 20.
Jornalista exilado por duas vezes, Galeano esteve no Brasil em anos de chumbo, quando trabalhava para um jornal de Montevidéu, e seu editor pediu que escrevesse sobre a realidade social brasileira com a ditadura.
“Ele pediu que eu fosse ao Brasil, mas, por ter ido diversas vezes ao país, disse que o faria do Uruguai mesmo. Insistiu e eu fui até o Rio de Janeiro. Queria que eu visse o modo como as pessoas viviam a ditadura nas ruas. O que mais me chamou a atenção foi uma frase em um muro, que pedia que o governo brasileiro ‘fosse logo entregue nas mãos de Charles Elbrick’, embaixador estadunidense na época”, assinalou, rindo do quanto aquela frase era certeira ao resumir suas impressões sobre aquele período. “Aquilo materializava a insatisfação diante dos rumos que o país tomava”, concluiu.
Observávamos a naturalidade com que Galeano enunciava. Era terno ao fazê-lo. Não havia dúvidas de que sua sutileza com as palavras, expressa principalmente em O Livro dos Abraços, que contou-nos ser seu preferido, também se refletia na calma e tranquilidade de sua fala.
Ao se tratar de anos ditatoriais, contamos o quanto veículos brasileiros têm trazido à tona as memórias da resistência com relação ao regime militar. Citamos o exemplo das histórias que retratam a realidade das universidades brasileiras na época e o quanto esses espaços, que sempre foram considerados centros de resistência e formação ideológica social, foram claramente reprimidos pelo governo.
Havia temor ante o crescimento de ideias opositoras, o que culminava na infiltração de pessoas ligadas à ditadura no espaço universitário e a exclusão de alunos e professores considerados rebeldes. Hoje, a sobrevivência destes locais representa um símbolo de resistência àquele governo. Sobre isso, relatou a maneira similar com que a ditadura uruguaia agiu naqueles anos.
“A memória tem mãos”
“A ditadura uruguaia agiu de forma parecida. Este Café, por exemplo, foi reconstruído pelas mãos da memória. Porque a memória tem mãos. Por três vezes, esse espaço foi destruído pela ditadura. Era considerado um local de típico encontro da classe intelectual daqui. Vinham com um caminhão durante a noite e desmanchavam o lugar. Arrancavam os pisos, retiravam as mesas e cadeiras, roubavam os lustres. No entanto, os frequentadores sempre tinham a disposição de reconstruir o Café através de suas lembranças em fotos e fatos”, contou-nos com brilho nos olhos que ora miravam em nós, ora nas paredes com fotografias de velhos conhecidos.
Lembrou-se também de uma vez que esteve em Leningrado – sua filha o corrigiu atentando ao atual nome, São Petersburgo –, quando as pontes da cidade, que foram destruídas pela guerra, estavam sendo reconstruídas por moradores através de fotografias. A memória parecia dar-lhe as mãos, ali.
O suspiro forte das lembranças abriu espaço para que nos entregasse dois de seus livros, Mulheres e Dias e noites de amor e de guerra, que trouxera especialmente para nos presentear. Assinou com doçura. “Abraços, Galeano”, desenhando um porquinho abaixo de seu nome. Também fez isso nos livros que trouxemos para receber sua assinatura.
Quando perguntado sobre a escolha desse animalzinho, não demorou a dizer que “alguns escritores escolhem dragões e serpentes como mascotes de suas obras e assinaturas. Eu escolhi o porquinho, pois ninguém o havia escolhido. Gosto do porquinho”. Sua graça fez com que todos à mesa sorrissem.
A ele, entregamos presentes escolhidos com cautela. O livro Deus Foi Almoçar, do escritor paulistano Férrez, e o filme O Som ao Redor, do diretor recifense Kléber Mendonça Filho. Não poderíamos deixar o autor de Futebol ao Sol e à sombra partir sem indagá-lo sobre uma de suas maiores paixões. Qual seria, então, sua opinião sobre o futebol sul-americano?
Futebol
Galeano foi preciso no chute. “Ele continua sendo uma característica muito forte de nossa cultura, mas as atuais condições do esporte no mundo, baseadas na comercialização do futebol, fazem com que nossos jogadores sejam vendidos muito cedo, o que provoca pouca contribuição ao nosso modo de jogar”, respondeu. Completou dizendo que, no entanto, os jogadores sul-americanos têm um histórico de mudanças através de pequenas revoluções.
“Há um movimento no Chile em que os jogadores se uniram e começaram a fazer parte da tomada de decisão na liga. O Bom Senso Futebol Clube também é outro exemplo. O futebol não pode se render à política de interesses que atualmente dirige os clubes”, reiterou. Comparou esse exemplo ao da Democracia Corintiana, que surgiu na década de 1980, liderada por Sócrates, “que era muito meu amigo”, ressaltou. Finalizou com uma pergunta que um dia fizeram a Sócrates sobre essa amizade, que também levantara nossa curiosidade. “Sócrates respondeu: ‘O Eduardo fala de futebol e eu falo de política. É simples’”, sorriu com a intimidade contada.
O relógio batia meio-dia, mas o charme matinal uruguaio não nos tirava o sentimento de que ainda pareciam nove da manhã. Galeano aproximou-se da mesa tanto quanto se achegou a nós. Perguntou-nos onde vivíamos no Brasil. “Vivemos entre São Paulo e Rio de Janeiro”, respondemos. Como conviesse, perguntamos se lhe agradavam cidades como as nossas, mas nosso Eduardo foi enfático ao negar o apreço às grandes metrópoles.
“Não gosto de cidades grandes, como São Paulo. Elas têm caos demais. Gosto de Montevidéu porque consigo compreendê-la. Não se pode compreender uma cidade como São Paulo. Por isso escolhi viver aqui e sempre para cá voltar”, disse. Entreolhamo-nos pelo tempo em que o termo compreensão ressoou no ambiente.
Eduardo foi se levantando com os presentes em mãos. Despedimo-nos com um cumprimento ainda mais carinhoso que o da chegada. “Ainda vamos nos rever”, disse, por fim. “As mãos da memória sempre trabalham por encontros assim”, quisemos entender. Agradeceu com os olhos. Agradecemos. Não como quando um livro termina por nos inspirar, mas, quando um novo nos segura logo na primeira página. “Até breve”, sentimos.