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Meio Ambiente | Em 50 anos, nunca a espiral de autodestruição foi tão assustadora

Família divide uma moto para se descolar pelas ruas de Niger, um dos países mais pobres do mundo. Com uma população de 24 milhões pessoas, o país vive em condições precárias, onde falta eletricidade, transporte e, especialmente, alimentação e água potável. Foto Omer Urer/Anadolu Agency via AFP.

A Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano foi realizada pela primeira vez em Estocolmo, na Suécia, entre os dias 5 e 16 de junho de 1972. Durante o evento foi criado o Dia Mundial do Meio Ambiente, que é comemorado todo 05 de junho, mas que só foi celebrado, pela primeira vez, dois anos depois, em 1974. A ONU foi criada em 1945 e, sem dúvida, não poderia ficar alheia aos problemas ambientais globais que vinham se acumulando desde o início da Revolução Industrial e Energética, conforme apontavam os estudos e os alertas de autores prescientes como Alexander von Humboldt (1769-1859), John Stuart Mill (1806-1873), Henry Thoreau (1817-1862), Rachel Carson (1907-1964), Nicholas Georgescu-Roegen (1906 – 1994) e tantos outros.

O título – “Meio Ambiente Humano” – expressa a dubiedade da Conferência que buscava discutir os problemas ambientais subordinados aos interesses da humanidade, refletindo uma antiga concepção antropocêntrica de que o meio ambiente pertence ao ser humano, quando, na realidade, é exatamente o contrário, pois todos os seres vivos pertencem à natureza, cada qual com o seu valor intrínseco.

A participação brasileira em Estocolmo foi bizarra, pois o ministro do Interior, General Costa Cavalcante, representando o governo militar, proferiu um discurso claramente antiecológico, defendendo o lado “humano” em detrimento do lado ambiental, disse ele: “Para a maioria da população mundial, a melhoria de condições é muito mais uma questão de mitigar a pobreza, dispor de mais alimentos, melhorar vestimentas, habitação, assistência médica e emprego, do que ver reduzida a poluição atmosférica” (ALVES, 2022, p. 115).

De qualquer forma, a Conferência de Estocolmo foi uma iniciativa marcante da governança global no sentido de promover a discussão de uma agenda ambiental junto à comunidade internacional. De fato, nunca se falou tanto em ecologia no mundo quanto nas últimas décadas. Porém, as contradições entre as demandas do desenvolvimento humano e as condições ambientais do Planeta se agravaram nos últimos 50 anos. A regra tem sido: a humanidade progride, enquanto a natureza regride. E essa situação é insustentável.

O crescimento demoeconômico de 1972 a 2022

A população mundial era de 3,85 bilhões de habitantes em 1972 e está estimada em 7,96 bilhões de habitantes em 2022. Portanto, o número de pessoas no mundo mais que dobrou em 50 anos. Mas este alto crescimento demográfico não impediu o crescimento econômico, pois o PIB global cresceu 4,8 vezes no período. Por conseguinte, a renda per capita da população mundial cresceu 2,3 vezes nos últimos 50 anos, conforme mostra o gráfico abaixo. É claro que existem grandes desigualdades na distribuição de renda, mas uma característica das últimas décadas é que os países em desenvolvimento, liderados pela China e Índia, apresentaram incremento do PIB e da renda per capita acima do desempenho dos países desenvolvidos, o que possibilitou redução significativa da extrema pobreza no mundo.

Acompanhando o crescimento da renda per capita houve também melhora nos indicadores de desenvolvimento humano. Segundo a Divisão de População da ONU, a taxa global de mortalidade infantil era de 95 por mil em 1972 (isto é, de cada mil nascimentos, 95 crianças morriam antes de completar 1 ano de idade) e caiu para 26 por mil. A expectativa de vida ao nascer, no mundo, estava em 58 anos em 1972 e subiu para 72,6 anos em 2019 (ainda não há dados sistematizados para 2022 que levem em consideração o efeito da pandemia da covid-19).

Houve também redução da fome e da insegurança alimentar. O gráfico abaixo mostra que a desnutrição atingia 34,8% da população dos países em desenvolvimento em 1970 e caiu para 12,9% em 2015. Os indicadores sociais apontavam para a melhoria geral do bem-estar.

Déficit ecológico e crise ambiental e climática

Mas o meio ambiente seguiu caminho oposto ao do desenvolvimento humano, já que todo o crescimento demoeconômico e a melhoria nos indicadores sociais aconteceu em detrimento da saúde dos ecossistemas e em prejuízo da estabilidade climática. O instituto Global Footprint Network apresenta uma metodologia capaz de medir a resiliência do Planeta diante do crescimento das atividades antrópicas. São duas as medidas usadas para se avaliar este impacto humano sobre o meio ambiente e a disponibilidade de “capital natural” do mundo. A Pegada Ecológica serve para avaliar o impacto que o ser humano exerce sobre a biosfera e a Biocapacidade avalia o montante de terra e água, biologicamente produtivo, para prover bens e serviços do ecossistema à demanda humana por consumo, sendo equivalente à capacidade regenerativa da natureza.

A Figura 1 mostra que em 1961 a Biocapacidade do Planeta era de 9,6 bilhões de hectares globais (gha) e a Pegada Ecológica era de 7 bilhões de gha. Desta forma, havia um superávit ambiental de 37%. Exatamente por volta de 1972, a Pegada Ecológica superou a Biocapacidade e o mundo passou a conviver com um déficit ambiental crescente. Em 2018 (últimos dados disponíveis) a Pegada Ecológica global chegou a 21,2 bilhões de gha, enquanto a Biocapacidade ficou em 12,1 bilhões de gha. Por conseguinte, o  superávit de 2,6 bilhões de gha, de 1961, se converteu em um déficit ambiental de 9,1 bilhões de gha em 2018.

Isto quer dizer que a civilização humana está vivendo além dos meios naturais renováveis e o déficit ambiental de 75% significa que o nível e o padrão do consumo global são insustentáveis. Evidentemente, são as parcelas mais ricas que mais contribuem para o déficit ambiental. Mas o aumento da Pegada Ecológica se espalha para todas as regiões do mundo na medida em que há aumento da população e da renda per capita, como acontece em países como China, Índia, Indonésia, Vietnã e tantos outros. A biocapacidade global per capita era de 2,62 gha em 1972 e caiu para 1,58 gha em 2018.

As concentrações de CO2 na atmosfera e o crescimento da curva de Keeling

O crescimento da população e da economia têm sido energizados pela queima de combustíveis fósseis que, inexoravelmente, libera dióxido de carbono na atmosfera. As emissões globais de CO2 estavam em 2 bilhões de toneladas em 1900, passaram para 6 bilhões de toneladas em 1950, chegaram a 16 bilhões de toneladas em 1972 e atingiram 36 bilhões de toneladas em média no triênio 2019 a 2021. Portanto, entre 1900 e 1972 o aumento foi de 10 bilhões de toneladas e entre 1972 e 2021 de 20 bilhões de toneladas. Em consequência, aumentou o efeito estufa, com elevação das temperaturas do Planeta.

Antes da Revolução Industrial e Energética (e durante os 12 mil anos do Holoceno) a concentração de CO2 estava no máximo em 280 partes por milhão (ppm). Na época da Conferência de Estocolmo, a concentração de CO2 na atmosfera já estava em 327 ppm e a população mundial era de 3,85 bilhões de habitantes. E a máquina poluidora não parou, pois a concentração de CO2 continuou subindo nos 50 anos seguintes, como mostra a ascensão da curva de Keeling.

Em 1988, o climatologista James Hansen fez um depoimento no Congresso Americano mostrando o perigo do contínuo aumento do aquecimento global. Naquele ano, a concentração de CO2 estava em 354 ppm e a população mundial tinha alcançado cerca de 5 bilhões de habitantes. A Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, também conhecida como Eco-92 ou Cúpula da Terra, aconteceu na cidade do Rio de Janeiro de 3 a 14 de junho de 1992, com o objetivo de debater os problemas ambientais globais. Naquela ocasião a concentração de CO2 tinha passado para 360 ppm, como mostra o gráfico abaixo.

A 1ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudança Climática (a COP1) aconteceu na cidade de Berlim em 1995. Dois anos depois, em 1997, aconteceu a COP3, quando foi assinado o Protocolo de Kyoto, no Japão. Naquele ano a concentração de CO2 estava em 367 ppm e a população mundial tinha chegado próximo de 6 bilhões de habitantes. A Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, conhecida também como Rio+20, foi realizada entre os dias 13 e 22 de junho de 2012, na cidade do Rio de Janeiro. Naquele ano, a concentração de CO2 estava em 396 ppm e a população mundial tinha ultrapassado 7 bilhões de habitantes.

Em 2015, nos 70 anos de criação da ONU, foram lançados os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) e foi realizada a COP21, quando foi assinado o Acordo de Paris que é um tratado ocorrido no âmbito da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima (CQNUMC). O acordo foi negociado na capital da França e aprovado em 12 de dezembro de 2015. Entre as principais medidas estão a redução das emissões de gases estufa, a fim de conter o aquecimento global abaixo de 2º C e, preferencialmente, abaixo de 1,5º C, e garantir a perspectiva do desenvolvimento sustentável. Naquele ano, a concentração de CO2 estava em 404 ppm.

Em 2021 foi realizada a Conferência das Nações Unidas sobre Mudança Climática, na cidade de Glasgow, na Escócia. A tarefa mais urgente da COP26 foi traçar metas mais ambiciosas de redução de gases de efeito estufa e arrefecer o aquecimento global. No ano passado, a concentração de CO2 estava em 419 ppm e a população mundial estava chegando a 8 bilhões de habitantes. A Organização Meteorológica Mundial publicou um novo estudo, em 10/05/2022, revelando que existe 50% de chance de a elevação da temperatura média global ultrapassar a meta do Acorde de Paris, de 1,5º C, nos próximos cinco anos.

Portanto, as emissões de CO2, a curva de Keeling e temperatura global continuam aumentando em ritmo acelerado, a despeito de todas as promessas das Conferências, Tratados e Acordos internacionais. Em 2022, o mundo comemora 50 anos da Conferência de Estocolmo, 30 anos da Conferência do Rio, 25 anos do Protocolo de Kyoto, 10 anos da Rio + 20 e 7 anos dos ODS e do Acordo de Paris. Mas, ano a ano, a Pegada Ecológica continua superando a Biocapacidade e os últimos 8 anos (2014-2021) foram os mais quentes do Holoceno (últimos 12 mil anos).

Desse modo, a falta de ações concretas coloca a Agenda 2030 da ONU em perigo. Como disse a ativista sueca Greta Thunberg, em atividade preparatória para a COP26, em Glasgow: “Isso é tudo o que ouvimos por parte dos nossos líderes: palavras. Palavras que soam bem, mas que não provocaram ação alguma. Nossas esperanças e sonhos se afogam em suas palavras de promessas vazias. Não existe um planeta B, não existe um planeta blá-blá-blá, economia verde blá-blá-blá, neutralidade do carbono para 2050 blá-blá-blá”.

A volta da fome e a espiral de autodestruição

Entre 1972 e 2015, o progresso humano, a despeito das desigualdades sociais, estava seguindo em frente, no sentido de que o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) estava aumentando não só na média mundial, mas também para a maioria dos países. Já o meio ambiente continuou regredindo com aumento do déficit ecológico e desequilíbrio climático. Ou seja, bem ou mal, a humanidade avançava, embora às custas do empobrecimento ambiental.

Todavia, a natureza não é uma cornucópia e jamais a humanosfera poderá ser maior do que a ecosfera. Como mostra a Escola da Economia Ecológica é impossível manter indefinitivamente o crescimento das atividades antrópicas, já que a natureza funciona com base no fluxo metabólico entrópico. Manter estas dinâmicas opostas pode resultar em colapso ambiental, na medida em que sem ECOlogia não há  ECOnomia e o ecocídio da 6ª extinção em massa das espécies é também um suicídio para a espécie dominante.

A humanidade já superou a capacidade de carga da Terra e a continuidade do crescimento demoeconômico desregrado aumenta a probabilidade de um colapso sistêmico global. Como escreveu Oscar Valporto, aqui no # Colabora (18/05/2022), a Organização Meteorológica Mundial (OMM), divulgou um relatório mês passado, mostrando que houve recorde negativo em quatro indicadores-chave da crise climática em 2021: 1) concentrações de gases de efeito estufa, 2) elevação da temperatura global, 3) aumento do nível do mar e 4) acidificação dos oceanos. O documento da OMM alerta para o fato de que os ecossistemas estão se degradando a uma taxa sem precedentes e, dentre outros efeitos, comprometerá ainda mais o fornecimento de alimentos.

Realmente, a rota divergente dos problemas sociais e ambientais está se transformando em rota convergente. Isto é, a agressão ao meio ambiente está gerando um efeito bumerangue e a degradação da natureza está provocando um retrocesso nas condições de vida da humanidade. Isto fica claro no crescimento do número de pessoas passando fome e no aumento da prevalência da desnutrição. O relatório da FAO, The State of Food Security and Nutrition in the World (2021), indica que houve uma reversão na tendência da curva da insegurança alimentar.

O gráfico abaixo mostra que o número de pessoas desnutridas no mundo atingiu o menor valor em 2014, com 606,9 mil habitantes com carências alimentares (representando 8,3% da população total). A partir de 2015 estes números começaram a subir e, com a emergência sanitária da covid-19, deram um salto em 2020, com estimativa média de 768 mil pessoas (representando 9,9% da população total).

Ainda não existem dados consolidados para 2021 e 2022, mas tudo indica que o número de pessoas vivenciando situação de fome aumentou em 2021, em função do recorde de casos e óbitos da pandemia, mas, principalmente, aumentou em 2022 quando o índice de preços dos alimentos da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) bateu recordes históricos.

Como mostrei no artigo “Índice de preço dos alimentos atinge o maior valor em 100 anos”, publicado aqui no # Colabora  (Alves, 08/04/2022), a combinação de crise energética, com crise climática e ambiental, com crise sanitária e com a invasão da Ucrânia pela Rússia fez disparar o preço da comida e a insegurança alimentar, atingindo em maior proporção as populações pobres dos países pobres.

Já existem previsões apontando para mais de 1 bilhão de pessoas no mundo vivenciando situação de fome no biênio 2022-2023. Isto transforma em quimera o objetivo 2.1 dos ODS: “Até 2030, acabar com a fome e garantir o acesso de todas as pessoas, em particular os pobres e pessoas em situações vulneráveis, incluindo crianças, a alimentos seguros, nutritivos e suficientes durante todo o ano”.

O ser humano vive uma crise existencial. O instituto sueco de pesquisa da paz divulgou, por ocasião do Fórum Econômico de Davos, o relatório “Promoting Peace in the Age of Compound Risk” (SIPRI, 05/2022), onde mostra que os gastos militares no mundo atingiram o recorde de US$ 2 trilhões em 2021 (devendo aumentar ainda mais em 2022) e alerta para um quadro inquietante, onde as crises se reforçam mutuamente. O relatório mostra que a humanidade se encontra numa “situação de emergência planetária”, com crises ambientais e de segurança se potencializando conjuntamente, de modo perigoso, pois desmatamento, derretimento de geleiras, elevação do nível dos mares, poluição oceânica por plástico e eventos climáticos extremos (ondas de calor, secas, inundações, etc.) ocorrem simultaneamente ao aumento dos gastos armamentistas e das mortes tanto em conflitos, quanto por carência alimentar.

Cinquenta anos após a Conferência de Estocolmo, as próprias autoridades da ONU estão se dando conta da gravidade dos problemas ambientais e civilizacionais. O secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, na abertura da Conferência de Glasgow (COP26), em 01/11/2021, disse: “É hora de dizer chega. Chega de nos matar com carbono. Chega de tratar a natureza como uma privada. Estamos cavando nossa própria cova”. E a secretária-geral adjunta da ONU, Amina J. Mohammed, disse agora em 2022, que a emergência climática está aumentando a escala e a frequência dos desastres naturais catastróficos e envolvendo toda a humanidade em uma “espiral de autodestruição”.

Referências:

Anselm Jappe. Estamos num barco sem combustível e arrancando madeiras do casco para alimentar as caldeiras, IHU, Por João Vitor Santos, 20/05/2022

https://www.ihu.unisinos.br/618760-capitalismo-e-desejo-de-destruicao-estamos-num-barco-sem-combustivel-e-arrancando-madeiras-do-casco-para-alimentar-as-caldeiras

ALVES, JED. Demografia e Economia nos 200 anos da Independência do Brasil e cenários para o século XXI (colaboração de F. Galiza), Escola de Negócios e Seguros, 2022

https://ens.edu.br:81/arquivos/Livro%20Demografia%20e%20Economia_digital_2.pdf

VALPORTO, Oscar. Meio Ambiente: Quatro indicadores de crise climática batem recordes em 2021, # Colabora, 18/05/2022

https://projetocolabora.com.br/ods13/quatro-indicadores-de-crise-climatica-batem-recordes-em-2021/

FAO. The State of Food Security and Nutrition in the World, Rome, 2021

https://www.fao.org/3/cb4474en/cb4474en.pdf

ALVES, JED. Índice de preço dos alimentos atinge o maior valor em 100 anos, # Colabora, 08/04/2022

https://projetocolabora.com.br/ods2/indice-de-preco-dos-alimentos-atingiu-o-maior-valor-em-100-anos/

SIPRI. Promoting Peace in the Age of Compound Risk, Stockholm, May 2022

https://www.sipri.org/sites/default/files/SIPRI_2021%20Stockholm%20Forum%20on%20Peace%20and%20Development_Report_compressed.pdf

*José Eustáquio Diniz Alves é sociólogo, mestre em economia, doutor em Demografia pelo Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional (Cedeplar/UFMG), pesquisador aposentado do IBGE, colaborador do Projeto #Colabora e autor do livro “ALVES, JED. Demografia e Economia nos 200 anos da Independência do Brasil e cenários para o século” (com a colaboração de F. Galiza), editado pela Escola de Negócios e Seguro, Rio de Janeiro, 2022.