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Crise da Light escancara fragilidades da privatização

Foto: reprodução/Light

A crise da Light no Rio de Janeiro expõe algumas das mais complicadas faces da privatização de setores estratégicos como o da energia. Em meio a uma série de problemas acumulados nos últimos anos, pairam dúvidas sobre como essa situação vai se refletir no serviço prestado e no futuro da empresa que pode, inclusive, sofrer intervenção federal.

Com uma dívida de R$ 11 bilhões, a Light S.A entrou com pedido de recuperação judicial em caráter de urgência, deferido pela Justiça nesta segunda-feira (15).

A recuperação judicial é solicitada quando uma empresa se encontra em dificuldades financeiras. Com o pedido aceito, eventuais execuções de dívidas são paralisadas e a empresa ganha prazo para elaborar uma proposta que inclua formas de pagamento aos credores e uma reorganização administrativa, para evitar que a situação se agrave e chegue a um cenário de falência.

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Segundo a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), o pedido foi interposto pela Light S.A. e não pela Light Serviços de Eletricidade S.A., subsidiária responsável pela distribuição de energia no Rio de Janeiro. De acordo com a Aneel, a legislação estabelece que os regimes de recuperação judicial e extrajudicial não se aplicam às concessionárias de serviços públicos de energia elétrica.

“Informamos que nenhuma obrigação intrassetorial teve seus pagamentos suspensos ou postergados, o que inclui contratos da distribuidora com geradoras, transmissoras e o pagamento dos encargos setoriais. Também estão preservadas integralmente as obrigações com fornecedores de serviços, equipamentos, mão de obra e funcionários”, diz nota da agência.

Nesta quarta-feira (17) o Ministério Público do Rio de Janeiro entrou com ação pedindo a suspensão da decisão da Justiça, questionando o fato de a recuperação da holding Light prever extensão de benefícios à distribuidora e à geradora de energia do grupo.

A Light S.A controla a Light Serviços de Eletricidade S.A. (Light Sesa), que é a distribuidora de energia do grupo; a Light Energia, de geração; a LightCom, comercializadora de energia; a Light Conecta, de serviços; e o Instituto Light. A distribuidora atende 31 municípios no estado do Rio de Janeiro e tem 11 milhões de consumidores.

Um dos problemas enfrentados estaria no fato de que cerca de 20% de sua área de cobertura no Rio de Janeiro está em regiões dominadas por milícias e pelo tráfico. Há locais onde as milícias intervêm, cobrando taxas dos moradores para que eles possam receber o serviço, o que acaba levando muitos deles a pagar para esses grupos e não para a empresa. 

Além disso, o alto índice de “gatos” — as ligações clandestinas —, a queda no consumo desde o início da pandemia e os juros altos também estariam entre as razões para a crise da Light. Balanço divulgado pela empresa aponta que as perdas relativas a roubos e fraudes ultrapassaram 58%, índice 1,2 ponto percentual superior ao mesmo período de 2022. 

Mas, conforme noticiado pela Folha de S.Paulo em fevereiro, uma onda de novas perdas acionárias “foi deflagrada pela própria empresa quando ficou público, no final de janeiro, que havia contratado os serviços da Laplace, conhecida por reestruturar companhias com problemas financeiros, entre elas a operadora Oi. Tanto foi assim que, na sequência, as principais agências de classificação risco de crédito, Fitch, Moody’s e Standard & Poors, rebaixam a nota da empresa”.  Desde 2020, a perda acumulada no valor das ações da empresa foi de 88%.

Soma-se a esse balaio de problemas a desconfiança trazida pelo fato de que um dos maiores acionistas da empresa é Carlos Alberto Sicupira, que também está no comando das Americanas, outra empresa em crise. E há, ainda, incertezas relativas à renovação ou não da concessão da empresa, que vence em 2026. 

Vulnerabilidade

Situações como essas mostram a vulnerabilidade dos serviços privados em setores estratégicos, como o da energia elétrica. E no final, acaba sobrando para o Estado resolver o problema. “No limite, o que vai acabar acontecendo, se acontecer, é que o poder público não vai permitir que esse serviço deixe de ser prestado. É uma concessão, mas a responsabilidade final acaba sendo do poder concedente”, explica Paulo Jäger, supervisor técnico do escritório do escritório do Dieese do Rio de Janeiro. 

Para ele, ainda que nem todos os problemas vividos hoje pela empresa estejam diretamente ligados ao processo de privatização, ocorrido nos anos 1990, o fato de ser uma empresa privada não garante uma prestação de serviços melhor do que o setor público. “A privatização não é uma panacéia, ela não tem o condão de fazer aquilo que sempre se promete, que é melhorar sobremaneira o desempenho da empresa, a qualidade do serviço prestado, os investimentos, o atendimento ao consumidor. Aqui no Rio isso não aconteceu”, diz Jäger. 

O caso não é fato isolado. Enquanto os neoliberais brasileiros ainda defendem as privatizações como solução de todos os males, cresce pelo mundo o número de empresas reestatizadas devido ao não funcionamento adequado dos serviços básicos ofertados. 

De acordo com a Public Services — uma parceria do Transnational Institute (TNI), sediado em Amsterdam (Holanda), com o projeto Globalmun, da Universidade de Glasgow (Escócia) — 226 empresas do setor de água voltaram a ser públicas no mundo nos últimos anos. Em seguida, estão os serviços de energia elétrica, com 167, fibra ótica, com 126 e fornecimento de água potável, com 80. 

Ex-funcionária da Light ainda quando a empresa era pública e ex-dirigente sindical, Sônia Latge participou da luta contra a privatização da empresa durante o governo Fernando Henrique Cardoso em 1996 — a estatal foi a primeira do setor elétrico a ser entregue à iniciativa privada. “Eu não tenho dúvida alguma de que toda privatização de serviços públicos dessas empresas estratégicas para o desenvolvimento econômico e social de um país é perniciosa”. 

Como exemplo, ela lembra que a empresa tinha cerca de 11 mil trabalhadores quando foi privatizada e hoje tem menos do que a metade, a maioria terceirizada, situação que leva tanto à precarização das condições de trabalho quanto à piora nos serviços prestados. 

Além disso, diz, “há alguns aspectos que a população desconhece: uma concessionária de serviço público fundamental para a vida da população não pode ‘falir’. E essa má gestão pode permitir uma encampação. Além disso, parte do valor da tarifa já traz em sua composição um percentual de 30% para “compensar as perdas econômicas” oriundas do furto de energia”.

Outro ponto destacado por Sônia é que “a concessionária vem conseguindo aumentos anuais de tarifa acima da inflação. Parece que, uma vez mais, estamos diante de um grupo de rentistas que, depois de ter se apropriado dos lucros milionários com a especulação, agora quer estatizar seus prejuízos”.

Sônia lembra, ainda, que faltam políticas públicas para enfrentar problemas como os causados por milícias e lembra que raramente uma empresa privada assume o papel de responsabilidade social que muitas vezes as públicas são capazes de cumprir. 

“Nós tínhamos, por exemplo, grupos que visitavam as favelas e comunidades e que conversavam com as associações de moradores para entender as necessidades locais e fazíamos cursos de formação para os jovens trabalharem como eletricista, instalador etc.”, lembra. Agora, diz,  “quando o acionista é um agente invisível e não está no coração do negócio, ele não vai querer saber de investir, de melhorar os vários aspectos que formam o sistema e que incidem sobre a vida das pessoas”. 

Ao que tudo indica, o imbróglio envolvendo a empresa ainda está longe de terminar. De um lado, a Light tenta convencer o governo a antecipar a renovação da concessão. Do outro, não se descarta a hipótese de uma intervenção federal na empresa. Nesta terça-feira (16), o ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, declarou que “todas as possibilidades estão abertas”. Pelo jeito, ainda não há luz no fim do túnel para a crise da Light.

Fonte: Portal Vermelho