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Como a mídia molda percepções sobre a crise hídrica no Brasil

Algumas narrativas sobre a crise hídrica influenciam as tomadas de decisão, enquanto outras são marginalizadas – Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

A escassez de água no Brasil é um problema complexo, que afeta diversas regiões do País, especialmente as áreas urbanas e ruralizadas. Um estudo recente, liderado por Lira Luz Benites Lazaro, pós-doutoranda no Instituto de Energia e Ambiente (IEE) da USP, revelou uma visão aprofundada sobre a crise hídrica no Brasil, com especial atenção ao estado de São Paulo.

O artigo Avaliando narrativas de escassez de água no Brasil – Desafios para a governança urbana, publicado no periódico Environmental Development, se originou da análise de mais de dois mil artigos de jornais de grande circulação no Brasil, cobrindo o período de 2010 a 2021, para mapear narrativas de escassez de água no País, identificando as fontes e tipos de narrativas mais persuasivos sobre o tema.

De acordo com a autora, o trabalho evidenciou que as narrativas observadas estão longe de serem neutras. “As narrativas sobre as mudanças climáticas, a escassez hídrica e outras questões importantes, como a pandemia, são produzidas em um contexto social e político, e cada grupo tem seus discursos predominantes, que muitas vezes acabam sendo os mais influentes nas tomadas de decisão”, esclarece.

Ela destaca a importância de refletir sobre temas como gestão, mudanças climáticas, acesso à água e impactos ambientais para entender melhor a formulação de políticas públicas e a perspectiva social sobre a crise hídrica. “Os discursos ocorrem em um contexto político e social, e algumas narrativas muitas vezes influenciam as tomadas de decisão e a gestão, enquanto outras são marginalizadas”, pontua a autora.

Análise de mídia

O trabalho utilizou uma abordagem metodológica que combinou análise de mídia e análise narrativa para identificar as principais narrativas de escassez de água no Brasil. A análise de mídia foi realizada por meio da coleta de artigos de três dos principais jornais brasileiros, que abordaram o tema da escassez de água entre 2010 e 2021. Os jornais utilizados foram Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo e O Globo.

“Utilizando a metodologia das narrativas, fizemos uma tipologia para avaliar o impacto dessas narrativas na formulação das políticas públicas e na gestão da água”, esclarece a pesquisadora.

• Primeiro, as narrativas institucionais e de má gestão destacam problemas como a falta de planejamento e infraestrutura adequada, a coordenação ineficiente entre os gestores da água e a necessidade de melhorar as estruturas governamentais para uma gestão mais eficaz dos recursos hídricos.
• Paralelamente, as narrativas centradas no clima ressaltam a vulnerabilidade do estado de São Paulo às mudanças climáticas e a importância de adaptar o planejamento e a gestão para aumentar a resiliência das cidades.
• Além disso, as narrativas de abundância questionam a percepção de que o Brasil tem recursos hídricos em abundância, apontando para a insustentabilidade dessa percepção diante da demanda crescente e da falta de planejamento.
• Já as narrativas de justiça hídrica abordam o acesso limitado à água e a infraestrutura inadequada. Por fim, as narrativas de negação tendem a minimizar a gravidade da escassez de água, enquanto as de desmatamento ligam a falta de água ao desmatamento em biomas como Amazônia, Cerrado e Mata Atlântica.

O levantamento, que foi parte de um projeto financiado pela Fapesp, empregou técnicas de Processamento de Linguagem Natural para extrair e categorizar diversos discursos sobre a escassez de água. “A pesquisa surgiu a partir de dois projetos financiados pela Fapesp: ‘Variabilidade climática do estado de São Paulo’, na verdade na Metrópole Paulista, e o meu projeto de pós-doutoramento, também financiado pela Fapesp, sobre o nexo entre energia e alimentos”, conta Lira Lazaro.

O trabalho começou enquanto a especialista, que é doutora pelo Centro de Ciência do Sistema Terrestre do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), estava na Universidade de Durham, na Inglaterra. “Foi utilizado o banco de dados da Factiva, que abrange dados econômicos, notícias globais e brasileiras, incluindo mais de 2.000 artigos de 2010 a 2021 para nossa análise”, explica.

Promover eficácia sustentável

Para Lira Lazaro, a pesquisa traz à tona a complexidade da crise hídrica no Brasil, destacando a interdependência dos vários setores envolvidos e a importância de políticas públicas que considerem essa complexidade.

Apesar de não ter mapeado a possível influência das narrativas reportadas diante da tomada de decisões políticas sobre o assunto, a especialista teoriza que relacionar ambos os assuntos seria “valioso”.

“Por exemplo, poderíamos cruzar os dados para mostrar como certas decisões foram tomadas em resposta a essas narrativas”, afirma ela ao pontuar que o evidenciamento da inação do Poder Público também constituiria uma conclusão importante. “O silêncio é uma forma de negação que usa a fábula clássica das roupas novas do imperador como exemplo de uma conspiração de silêncio, uma situação em que todas as pessoas se recusam a reconhecer uma verdade óbvia ou relutam em afirmá-la publicamente”.

A análise é um lembrete importante de que as crises hídricas são questões multifacetadas, influenciadas por uma variedade de fatores sociais, políticos e ambientais, e que uma compreensão aprofundada das narrativas envolvidas pode ser essencial para a formulação de soluções mais eficazes e sustentáveis.

Fonte: Jornal da USP